Quem me acompanha há mais de 34 anos no Jornal do Almoço, há 24 na Rádio CBN Diário e há 14 na mídia impressa, já percebeu que gosto muito de ouvir e contar histórias de verdade/verdadeira ou construídas pelas invencionices surgidas nas andanças pelos caminhos que nosso cérebro proporciona. Vou usar a palavra história – para representar ficção ou realidade, pois desde 1943 a língua portuguesa assim o permite.

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> Um amor animal

Tenho trazido durante essa pandemia, uma série de lembranças que marcaram minha vida e que têm me proporcionado um retorno muito carinhoso por parte dos nossos leitores. Esse carinho me encoraja a dividir com vocês algumas histórias guardadas na memória, contadas por meus pais ou por amigos ao longo da vida, que me emocionaram, me fizeram sorrir ou gargalhar, enfim, contribuíram com a formação de minha personalidade, do meu caráter, de minha existência até aqui.

> Nossas lembranças são imunes ao vírus?

Começo contando um “causo” verdadeiro e se eu carrego o sufixo Junior no meu nome, essa história foi vivida por quem assim me registrou… Meu querido pai.

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Mamão com mel

Serra da Mantiqueira.
Serra da Mantiqueira. (Foto: Mapio.net / Divulgação)

Ele nasceu no pé da serra, às margens de um regato que desce do mato lavando a pedreira. A serra era a da Mantiqueira, divisa de Minas com São Paulo, um dos mais belos recantos do vale do Paraíba – o rio maior – onde a imagem de Nossa Senhora de Aparecida fora encontrada por pescadores não muito longe dali.

Alguns anos e os estudos forçaram a mudança para a cidade. Lá, a família tinha uma casa pequena, mas agradável, em especial pelo quintal que em quase tudo lembrava a fazenda onde ele nascera. O pomar por exemplo, era até mais variado do que o que deixara às margens do Lavatudo – assim o regato era chamado.

Apesar disso sentia saudades do campo, mas como a mãe respeitava sua melancolia, ele buscava superá-la passando todo o tempo no pomar, saltando de galho em galho, saboreando cada uma das frutas que se sucediam nas distintas temporadas.

De manhã – a escola, a tarde – o pomar.

E a vida corria tranquila para aquele menino que nascera no pé da serra, às margens de um regato que desce do mato lavando a pedreira.

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A única pedra no sapato, era o Tio Juca – um bonachão que de vez em quando invadia a casa e o seu sossego, quase sempre na hora do lanche, em busca de algo mais que uma simples prosa com a irmã dele, sua mãe.

E ela o recebia com a alegria que merecem os irmãos que chegam e a mesa do café era imediatamente posta e completa – do queijo mineiro às bolachinhas de coalho de leite de cabra, sem falar na goiabada cascão que só saia do tacho quando aparecia visita.

Mas o que o Tio Juca mais gostava, era justamente o que mais lhe incomodava.

Parecia de propósito. Era só o menino vir do pomar com uma fruta nas mãos, que o tio com a cara mais lavada do mundo se apossava dela justificando:

:- Oh! menino, que fruta maravilhosa… Me dê aqui só um tiquinho prá exprimentá…
Só um tiquinho… Que doçura… É mel… É mel…

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> Em tempos de pandemia, o presente que é um alívio para a alma

Não é necessário dizer que a fruta não voltava para suas mãos, desaparecendo goela abaixo do “querido Tio”.

A vontade de explodir sua revolta, só era contida pelo olhar severo da mãe que estrategicamente se posicionava ao lado do fogão a lenha.

Assim era com a bela manga; com a deliciosa tangerina que ele arriscou buscar no galho mais alto da árvore; com a suculenta pera d’água que naquela rua só brotava no pomar da sua casa; com a bacia de jabuticaba, o melão, o jatobá, a goiaba, a guabiroba, a carambola, a uva, enfim…

Era só o menino entrar na cozinha com uma fruta nas mãos e lá vinha o chato do Tio Juca:

:- … Oh! Menino…Só um tiquinho… só um tiquinho.
Que doçura…é mel…é mel… Nnhhaacccc.

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E assim seguia a vida…

Era Domingo de páscoa. Depois da missa das dez, lá vem o Tio Juca para mais uma visita inoportuna. É recebido com o sempre carinho de “mãe” que a irmã lhe dedica.

Já na cozinha esperando o café, ele é surpreendido com a entrada do menino, que traz nas mãos cortado ao meio, o mamão mais bonito do pomar. Com um estranho sorriso no canto da boca, o menino saboreava uma metade e ao perceber o tio Juca vindo em sua direção, imediatamente estendeu a outra metade, que sem nenhuma restrição e com a gula dos desavisados vai em um “quase sem mastigar” para a barriga do “insolente”.

:- Oh! Menino, que mamão delicioso. Uuhhmmmm… Uuummmm…
Pena que tá verde… “tá amarrando, tá amarrando”…
Eu acho que ocê colheu antes da hora…

E recebe no estalo a explicação do menino, emoldurada pela cara mais “sem vergonha” deste mundo:

:- Num é isso não Tio Juca. É que eu “miji” nessa sua metade…

> Brincadeira de criança é coisa séria

Nunca um castigo materno foi tão bem aceito, pois depois disso estranhamente o Tio Juca deixou de gostar de frutas.
E como nunca aquele menino – nascido no pé da serra, às margens de um regato que desce do mato lavando a pedreira – pode sentir tanto o sabor delas até o fim.

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