Deixei passar o Dia dos Pais para publicar essa crônica e creio que você, leitor, compreenderá por quê. Ela fala do mais lindo presente que eu ganhei num Dia dos Pais – coincidentemente o dia do nascimento de minha filha Maria Carolina. E eu, onde estava…?
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Vamos lá…
Mario Aleixo, nosso primeiro filho nasceu em 1978. Cesariana como o pai. Do mesmo modo Maria Carolina, que chegaria em agosto de 1980, também viria por esse método de concepção. Marcada a data – dia 08, lá fomos nós para a Santa Casa de Misericórdia de Tupã/SP onde morávamos à época. Quem nos aguardava era o dr. Luis Augusto, obstetra que já trouxera ao mundo nosso primeiro filho. Como naqueles tempos ainda não era permitida a entrada e o acompanhamento na sala do parto pelo pai ou qualquer outro familiar (a medicina evoluiu muito nesse quesito e hoje sabe da importância da presença próxima especialmente do esposo/pai para a segurança/autoestima da parturiente e do bebê que está chegando), ficamos todos nós na antessala do Centro Cirúrgico.
Todos nós?
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Sim: meus pais, meus sogros, os irmãos e cunhadas, enfim.
Nos despedimos da Glorinha que seguiu por aquele longo e frio corredor preparada para o parto, quando fomos informados que a cirurgia não deveria ultrapassar uma hora e quinze minutos.
Tão logo fecharam as portas do Centro Cirúrgico, passa o Enfermeiro Chefe do hospital (carinhosamente conhecido por Nego – embora parecesse mais um alemão) e como boa fonte que eu mantinha pela Rádio Piratininga onde chefiava o Departamento de Jornalismo, me pergunta:-
:– Mário, queres um furo de reportagem?
:- Claro que sim. Respondi.
Vale ressaltar que um dia antes, um violento assassinato havia ceifado a vida de um jovem na vizinha cidade de Herculândia e nada menos que 19 facadas perfuraram o tórax, crime praticado pelos ciúmes do inconformado ex-marido da moça com quem o jovem tinha recém iniciado um romance. O assassino entrou no açougue em que o jovem trabalhava e nem discutiu – partiu para a ação com a própria faca que a vítima usava. O crime chocou toda a região e a audiência mórbida das emissoras (Rádios Piratininga e Rádio Clube) bombou. Bastava o prefixo de Notícia e todo mundo corria para perto do rádio. E a sugestão do “furo” proposta pelo Nego estava há 30 metros de onde eu me encontrava, no IML – Instituto Médico Legal da cidade, que integrava o prédio da Santa Casa aproveitando um dos seus médicos mais conhecidos como Legista juridicamente registrado – Dr. Antônio Roberto Olenscki.
Minha fonte garantiu que o corpo do jovem assassinado havia chegado ao IML e seria necropsiado em instantes para compor juridicamente a peça do Inquérito policial. Talvez, se eu chegasse lá, o Dr. Olenscki me concedesse uma entrevista. E, pelas circunstâncias seria um furo de reportagem.
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Minha relação com o médico era a melhor possível. Além de várias vezes tê-lo entrevistado, ele era também um apaixonado pela noite, gostava de um piano e sempre que possível estávamos juntos dividindo bons momentos da música, da boa comida e de um papo amigo. Abri minha bolsa para conferir se estava com o microfone sem fio (a Rádio Piratininga foi a primeira emissora da região a ter um microfone sem fio – mais exatamente um hand-talkie fabricado pela Embracon de Guarulhos, com 3 watts de potência, semelhante aos walkie-talkies dos Policiais Rodoviários, com frequência exclusiva e autorizada pelos órgãos reguladores das comunicações). O sem-fio dava à nossa emissora uma capacidade de transmitir o que quisesse num raio de quase 30 quilômetros com o microfone manual e quase 100 quilômetros com um aparelho maior (10 watts) instalado na Unidade Móvel, a semelhança das viaturas da PRF.
Mas é claro que, como tudo estava sob controle, eu não poderia perder aquele furo de jeito algum. Minha esposa estava nas mãos do melhor médico da região, tinha o que havia de melhor para a cirurgia, todos os parentes mais próximos ali aguardando, a entrevista duraria no máximo 10 minutos, então… Lá fui eu.
Sai pela porta lateral, dei uns 30 passos e ao chegar no prédio do IML, um grupo de estudantes de enfermagem estava pronto para ingressar na sala da necropsia como parte do estágio que os preparava na prática para desempenhar a importante missão de servir ao próximo nos momentos em que a doença os abala. O Escrivão de Polícia acomodado frente a uma mesa no canto da sala, sobre a qual uma máquina de escrever Remington Rand aguardava apenas que as teclas fossem acionadas para registrar nas folhas em branco, o que seria dito pelo dr. Olenscki. Todos usavam aquele jaleco/protetor, gorrinho e máscara igualmente brancos, além de luvas nas mãos e sobre os sapatos para evitar contaminação. Tão logo cheguei fui recebido com o entusiasmo que esperava. Cumprimentei a todos e pedi a entrevista com o Dr. Olenscki e recebi um sonoro não:
:- Não?
:- Não! Hoje você não vai me entrevistar. Hoje você vai narrar uma necropsia. Creio que, pela primeira vez em Rádio, iremos explicar como é feita uma necropsia, e para o que ela serve como peça integrante do arcabouço jurídico que acompanha um inquérito, uma perícia e serve à acusação e à defesa. Gostou meu amigo?
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Juro que levei um enorme susto.
> Nossas lembranças são imunes ao vírus?
Não tinha a menor ideia do que poderia sair daquele trabalho, mas como era exclusivo e inédito, era tudo o que eu adorava fazer a serviço da notícia. Imediatamente me vesti de ingressei com todos na sala onde jazia inerte o corpo do jovem assassinado de Herculândia. Sei que parece tétrico, macabro, horripilante (e era), mas tão logo chamado pelo locutor do estúdio após a vinheta que caracterizava Edição Extraordinária do Repórter Piratininga, lá fui eu com o assessoramento mais do que técnico do Dr. Olenscki (que igualmente adorava situações semelhantes).
A cidade parou em torno dos rádios.
Ninguém conseguia acreditar que a Mário Motta estava “transmitindo” uma necropsia “ao vivo” e com a descrição e os comentários abalizados do próprio Legista – Dr. Olenscki.
E foi exatamente o que aconteceu.
Desde a cisão com o afiado bisturi numa linha que ia do “pomo de Adão” lá no pescoço, ao umbigo, a abertura da derme e da epiderme de ponta a ponta do tórax, o afastamento da pele para permitir que a serrinha separasse as costelas do externo cortando as cartilagens, a dobra do maior osso/placa do corpo para sobre o rosto e a possibilidade de se observar todos os órgãos, aparelhos e sistemas que se encaixam na caixa torácica. Descrição mais que perfeita.
Em seguida, munido de ferrinhos coloridos (cada qual devidamente numerado, 1, 2, 3, 4, etc), lá vai o dr. Olenscki cobrindo novamente o tórax da vítima com a pele e perpassando cada uma das perfurações com um daqueles ferrinhos, relatando ao Escrivão por onde cada uma das facadas penetrou e foi recebida, até conseguir detectar qual delas foi a responsável por tirar a vida do jovem açougueiro. E quando isso foi possível, caracterizou-se a causa mortis e, portanto, o assassinato.
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Claro que essa explicação é bastante amadora, mas imaginem isso sendo descrito no ar, em 1980, numa cidade de 60 mil habitantes, com duas emissoras de rádio, uma delas fazendo esse furor e a outra procurando algo que justificasse o “furo” de reportagem que havia acabado de levar e que marcou para sempre a história do rádio em Tupã e na Alta Paulista…
Mas, o tempo corria célere e num determinado momento em que a cobertura se encaminhava para os minutos finais, o locutor do estúdio corta o meu microfone e chama:
– Mário Motta, excelente trabalho. A resposta dos nossos ouvintes é espetacular e a audiência igualmente é unânime. Mas, peço que você se dirija ao Centro Cirúrgico da Santa Casa onde é reclamada a sua presença nesse instante. Acaba de nascer um lindo bebê. Uma menina e é sua filha caro Mário. Parabéns!
Não creio ser preciso dizer mais nada.
Havia ganho naquele momento o mais lindo presente que recebi num Dia dos Pais.
Esse episódio foi há 40 anos…
Até hoje quando relembro essa passagem, não me perdoo, mas ao contrário de me execrar, minha filha Maria Carolina deixa transparecer até uma ponta de orgulho pelo profissionalismo do pai. Ainda bem!
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