Pau de Arara para quem não sabe, era o apelido dado aos caminhões que serviam de transporte para os migrantes do norte e nordeste rumo ao centro e sudeste do país, muito especialmente Belo Horizonte, Rio e São Paulo, entre os anos de 1940 e 1960. Com poucas estradas e linhas de transporte regulares quase inexistentes, além do alto preço das passagens, sair de lá com a família inteira de ônibus rumo à uma nova vida mais ao sul, era quase inviável.

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O Pau de Arara veio proporcionar essa possibilidade e além de tábuas que eram colocadas transversalmente nas carrocerias e que serviam de bancos para os passageiros, à noite um velho encerado cobria o espaço que se transformava numa espécie de “cama coletiva” e por ali as pessoas se amontoavam para dormir, tamanho o cansaço produzido pelo peso do sol e da poeira enfrentados galhardamente durante todo o dia.

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Foi num desses caminhões que ele embarcou. Era um F.N.M. (sigla de Fabrica Nacional de Motores, mas que no abecedário nordestino era chamado de FêNêMê). Seu destino era São Paulo, mas desistiu no meio do caminho e como vinha sozinho escolheu ficar em Mato Verde, afinal, já estava nas Minas Gerais (embora pertinho da divisa com a Bahia). Longe de quase tudo, pequenos vilarejos e estradinhas quase picadas rurais interligando sítios e fazendas e no encontro dessas estradinhas um cruzamento, uma bodega e um armazém de secos e molhados.

Cirço, era esse seu nome. Pegou serviço numa fazendola e há 20 dias não saia do cantinho que lhe fora arrumado junto ao estábulo. Ali ele dormia e pensava no dia em que poderia buscar a família no interior do Piauí.

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Ponto de encontro no fim de semana.
Ponto de encontro no fim de semana. (Foto: Reprodução)

Fim da semana, lá vai ele ao único armazém da região. Em anexo o boteco em que os peões se reuniam no entardecer de sábado para beber cachaça e jogar conversa fora. Ele chegou, cumprimentou a todos e educadamente pediu uma pinga.

Veio a pinga. Ele bebeu e suspirou surpreso dizendo: “Nossa Senhora, eu pensei que não tivesse mais dessa pinga, “siô”!?

Mariano, o dono da bodega assustou-se: “É mesmo? Pois esse garrafão estava no meio de uns 40 que eu tenho no depósito. Fui comprando aos poucos dos caminhoneiros que passam por aqui e trazem do nordeste.Tenho um monte e muitos nem abri.”

Cirço carimbou: “É de cana caiana, safra 1947, fabricada no Engenho Banabiú, Quixeramobim, no Ceará.”

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Mariano, arregalou os olhos, achou que era brincadeira e não acreditou. Foi conferir, achou um rótulo quase apagado na palha que cobria o garrafão e lá estava : Alambique Banabiú – Quixeramonim – Ceará. 1947. Bingo!

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Todos no armazem se levantaram e foram conferir. Cirço até não entendeu o motivo da admiração.

Mariano foi ao depósito, pescou outro garrafão no meio do estoque , serviu Cirço e perguntou: “E essa, é boa? De onde é?” Cirço bebeu, fez carinha de nhen-nhen e disse: “Também é boa. Mas é bem mais nova. Safra de 1963. É Sanhaçu de Pernambuco. Versão prata”.

De novo Bingo! No rótulo do garrafão, lá estava Sanhaçu – PE, 1963, com todas as letras.

E assim foram mais cinco ou seis tentativas e o Cirço não errou uma sequer. Descobriu até que ele tinha um garrafão da famosa Ypióca, destilada em Maranguape, terra do grande Chico Anysio, no Ceará.

Mariano não quis nem cobrar as cachaças de Cirço e ainda fez uma proposta – se ele acertasse a última prova, não pagaria mais nada no boteco enquanto morasse por ali.

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Proposta aceita. Mariano foi lá dentro, pegou um cálice novo, bandeja com toalhinha de linho, e sem que Cirço percebesse encheu o cálice com água fresquinha da tina de barro e veio ao balcão: “E essa de onde é Cirço?”. Silêncio na bodega. Cirço olhou a cor, achou clara demais, cheirou, bebeu um gole, outro gole, fez cara de paisagem, outro gole, e disse:

“Fraquinha né?!”. Depois de alguns minutos deu o veredicto assustador: “Não sei. Desculpem, mas é a primeira vez que não consigo identificar uma cachaça”. Mariano começou a rir e revelou a trapaça: “Pois é claro, não vai identificar nunca. Não é cachaça, é água”…

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Cirço fez uma cara ainda mais surpresa e disse em bom tom :

”Poxa, então é isso aí que é água?!"

* Uma humilde homenagem, ao grande Rolando Boldrin.

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