Aurora acordou de cara fechada – o que não é comum. Geralmente, ela acorda sorrindo. Por vezes, gargalha durante o sono. De manhã, nos explica: “Sonhei que eu era um cachorro”. É normal olhar pra ela dormindo e perceber um sorriso. A menina está sempre feliz. Menos hoje de manhã. Ainda de pijamas, veio até a mesa da cozinha e, emburrada, sentou na cadeira. “Bom dia”, dissemos, pra não ouvir resposta. “Eu não quero crescer mais”, ela disse, lábios duros e sobrancelhas juntas.

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Ela explicou que tinha sonhado que tinha um salão de beleza, as clientes não paravam de chegar e ela tinha que correr de um lado para o outro atendendo as pessoas. Cortava o cabelo de uma, pintava o cabelo de outra, uma nova cliente entrava na loja, outra queria pagar a conta, outra reclamava do atendimento lento. E a Aurora sozinha tendo que dar conta de tudo. Minha filha de oito anos está estressada, angustiada com a tortura do labor.

Acho que sei de onde veio esse sonho. A menina, durante as férias, começou a jogar videogame com as amigas, no computador. Esses dias, dei uma espiada no que ela estava jogando, não sei se era Roblox ou PKXD, e lá estava a Aurora correndo de um lado pro outro entregando pizza. “Eu ganho moedas, pai”, ela me disse. A menina, no jogo, entregando pizza com aquela mochila quadrada do iFood nas costas, tentando ganhar a vida virtual, pagar as contas do cabelo rosa que ela comprou pro personagem dela. Olha, meus amigos, a azáfama começa cedo.

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Minha mãe me dizia, enquanto eu limpava o chão da cozinha e lavava a louça, nos anos 90: “O trabalho dignifica o homem!”. Depois descobri que uma frase parecida era letreiro nos campos de concentração. Como vocês sabem, a palavra trabalho vem do latim tripalium, que também derivou a palavra tortura. Já faz muito tempo, um amigo aprimorou a frase da minha mãe: “O trabalho DANIFICA o homem”, e explodiu em risada.

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Disse à Aurora que ela não precisava abrir um salão de beleza. Nem entregar pizza. “Eu gostaria de entregar pizza de bicicleta”, disse ela, mais tranquila. Comeu um pão com manteiga e já estava bem humorada. “Encontre um trabalho que você ama e você nem vai sentir que é trabalho, Aurora”, eu disse, imitando o Confúcio. Aurora continuou comendo seu pão com manteiga, que eu e minha esposa trabalhamos para comprar, o padeiro trabalhou pra fazer, o produtor trabalhou pra cultivar, e assim por diante. Obrigado a todos.

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