Um pouco antes da palestra o organizador me levou pra conhecer o escritório da empresa. Uma empresa moderna, dessas que todo mundo trabalha junto, sem paredes, salas de reunião de vidro, cozinha com mesas altas, jovens descansando em pufes coloridos. Mostrando o escritório, o organizador me dizia: “Aqui fica a área de Customer Success” (todas as áreas tinham nomes em inglês), “Aqui está nossa parede de sonhos, os colaboradores escrevem um sonho e colocam aqui”, vi duas fotos com um jatinho, “Esta é nossa visão, missão e valores”, vi a palavra MERITOCRACIA escrita grande. “Pois aqui acreditamos muito na ME-RI-TO-CRA-CIA”, me disse didaticamente o organizador, como se estivesse catequizando um novo funcionário. 

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Fiquei, obviamente, um pouco abalado. Eu estava na empresa para falar justamente isso: não existe meritocracia se os pontos de partida são tão díspares. Não existe meritocracia em um país tão desigual, a não ser que você contrate apenas pessoas com o mesmo gênero, cor de pele, orientação sexual e… olhando ao redor percebi que era quase isso. Todos homens brancos, algumas mulheres. “ME-RI-TO-CRA-CIA”, se você, mulher, aceitar piadas machistas e não ligar pra comentários inapropriados, se você se equilibrar em saltos, se maquiar adequadamente, não discutir, não se impôr, não for mandona, se você não engravidar, se você não vier com esse papinho de opressão de gênero, patriarcado, feminismo, quem sabe, talvez, um dia, a MERITOCRACIA funcione e você seja promovida.

E, claro, se você for negro dificilmente será contratado. “Porque aqui nós só contratamos os melhores!”, é claro, e você mora longe, estudou em escola pública, teve problemas na família, ajuda financeiramente os irmãos, sua irmã ~escolheu~ engravidar quando era adolescente, a polícia de vez em quando pára pra dar geral, você não conseguiria. “Nossa empresa só contrata os melhores”, eles dizem.

E, claro, se você for negro dificilmente será contratado.

E eu me lembrei de quando expliquei pra minha filha pequena quem foi o Martin Luther King, e de como era bonito o que ele disse. E que mataram ele. E de como prenderam os que lutaram pacificamente e de como mataram os que lutaram violentamente. E de como Jesus falou coisas lindas também, sobre ajudarmos sempre o próximo. E quando eu contei isso pra minha filha ela me perguntou: “Mataram ele também, pai?”

"Sempre que as questões de compensação ou do tratamento preferencial para negros aparece, alguns amigos ficam horrorizados”, disse Martin Luther King. “O negro deve ser tratado como um igual, mas desde que não peça mais nada. À primeira vista, isso parece razoável, mas não é realista. Pois óbvio que, se um homem sai da linha de partida de uma corrida 300 anos depois do outro, precisaria de uma façanha inacreditável para alcançar o colega”. 

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Quando nós, que temos todas as condições para sermos bem-sucedidos, não enxergamos as monumentais dificuldades dos outros e não lutamos contra esse sistema, com nossas empresas, nossas palestras, nossas redes sociais, nossas conversas com amigos; quando nós não conseguimos ultrapassar o segundo parágrafo de um texto porque ele tem a palavra “machismo”; quando nós ficamos cansados desse “papinho de racismo”, quando chamamos de “mimimi” os protestos e reclamações, estamos compactuando com essa corrida injusta. 

O organizador me apontou para a parede de sonhos do escritório. “Nossa empresa surgiu de um sonho, sabia?”, me perguntou. “O sonho do nosso CEO”. Um sopro de esperança atingiu meu coração. “Será mudar o Brasil? Será oferecer uma vida melhor para as pessoas através da tecnologia? Será o clichê startupeiro ‘Fazer o Mundo um Lugar Melhor’?”, pensei. 

“O sonho dele era ter um helicóptero!”, o organizador me disse. “E agora ele TEM um helicóptero!”, ele disse, quase batendo palmas. “Ele realizou o sonho!”, ele disse. “Ele realizou o sonho”.

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