É claro que estou cansado de ficar preso em casa. Qualquer pessoa que está fechada em casa desde o começo de março com duas crianças se sente desesperado. A ciência já estudou o impacto que uma cela solitária tem em prisioneiros e o poder da tortura chinesa em soldados capturados, mas ainda não entendeu o confusão mental que sentimos ao ficar três meses em um apartamento com crianças, trabalho remoto e ensino à distância. Certamente, no futuro, descobrirão que é pior do que as torturas chinesas.
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Leio notícias de madrugada. Tenho esperança de uma manchete: “Acabou!”. “A-CA-BOU”, diria o jornal. Leio com a voz do Galvão Bueno na final de 94: “Acabooooooouuuu!”. Acharam a vacina, o remédio era gengibre, toma própolis que fica imune, algo assim. Todo mundo pra rua, crianças pra escola, adultos pro A.A. A vacina não vem e não aguento mais o confinamento.
Não aguento mais lives. Não aguento mais tweets comentando o que está passando na televisão. Não aguento mais ligações de vídeo, já estamos na reunião te esperando, e aí como está a quarentena, ih congelou a imagem do Carlos, vamos tentar sem vídeo, só áudio. Gente, se vamos fazer uma ligação de vídeo sem vídeo vamos usar uma tecnologia de 1876 conhecida como TELEFONE. Não aguento mais a pessoa que só filma o teto, fica aquela cabeça pequena no canto de baixo da tela e todo o teto, as luminárias, os cantos mofados, o gesso horroroso. Não aguento mais o Zoom, o Hangout, o Skype. A gente descobre a idade das pessoas pelo serviço que elas usam. “Vamos fazer um Skype?” significa que a pessoa tem 200 anos.
Não aguento mais lives. Não aguento mais tweets comentando o que está passando na televisão.
Não aguento mais a minha paranoia com o vírus. Cabeça vazia, oficina do “será que eu sou assintomático?”. Não aguento mais abrir portas do edifício com o cotovelo. Não aguento mais voltar do supermercado com a certeza de que vou morrer. Lavar todas as compras na pia com água e sabão. Imaginar que alguma compra está contaminada. Fazer mentalmente todo o caminho do virus, em reverso, ele na embalagem do macarrão porque o repositor tinha pego da caixa e o entregador tinha pego no caminhão que tinha sido usado por um outro motorista de manhã que coçou o nariz e deixou o muco na direção. Eu fico fazendo todo o caminho do vírus chegando em mim, uma fábula impressionante.
E, claro, acima de tudo, não aguento quem não respeita a quarentena. Porque eu estou aqui, paranoico e cansado, nervoso e cuidando de duas crianças em ensino à distância, eu estou aqui sofrendo por respeito aos médicos, enfermeiras, professores, idosos, cientistas, especialistas, trabalhadores essenciais, pessoas em grupo de risco e em situação de vulnerabilidade social e se todo mundo fizesse sua parte, se todo mundo passasse por isso junto, a gente sairia bem mais rápido disso tudo. Mas por causa de quem não entende o coletivo, quem é ignorante e não liga pros outros, vou ficar aqui por alguns meses, anos, séculos, milênios, até inventarem uma vacina. E alguns não tomarão a vacina, “a vacina é comunista!”, dirão. E assim ficaremos por séculos. O tal do novo normal.
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