Era mais ou menos o dia 47 (~mil~) da quarentena e resolvemos fazer um café da manhã especial, com ovos e pães de queijo e torradas com geleia e suco de laranja; tiramos as louças que a minha filha chama de “chiques!” de cima do armário, preparamos a mesa da cozinha e colocamos pra tocar músicas do Beatles. Ela adora Twist and Shout e quando vem a parte do aaaaaaaaaAAAAAAAAAAHAHAHAHAHAHAHAAHAHAHA balançamos os braços em direção ao céu e pulamos juntos, imitando uma guitarra com as mãos. Ela imita tudo o que eu faço e quando eu olho pra minha filha me conheço um pouco mais: a cara de dor na hora que simulamos um solo de guitarra; os olhos arregalados quando canto um refrão; a forma como ela (e eu) dançamos germanicamente, sem ginga alguma, mas emanando uma felicidade boba. 

Continua depois da publicidade

Foi quando começou a tocar Blackbird e, o Paul mal tinha começado a cantar, eu comecei a chorar de um jeito incontrolável, como se meus olhos fossem algum encanamento com rachadura. “Blackbird singing in the dead of night”, ele cantava na minha cozinha, e não sei se era lembrança do dia em que vi ele ao vivo; não sei se era o tempo todo que passamos fechados em casa; não sei se era o barulho de passarinho da música, que inevitavelmente nos lembra uma liberdade que talvez não volte nunca mais; não sei se era perceber o quanto éramos sortudos e abençoados por termos uma casa, uma família, ovos mexidos e café, os Beatles tocando na nossa cozinha e crianças para nos mostrar o que importa nesse mundo.

Ela imita tudo o que eu faço e quando eu olho pra minha filha me conheço um pouco mais (…)

Sempre que vê uma estrela cadente ou sopra velas no bolo de aniversário, minha filha menor fecha os olhos e sorri, fazendo um pedido. É uma cena especialmente bonita, pois ela realmente se concentra, e então sopra as velas. Sei que é contra a lei universal dos pedidos, mas sempre pergunto o que ela desejou. E ela sempre me responde, cochichando no meu ouvido: “Que a nossa família nunca se separe”. Todas as vezes, há oito anos, o mesmo pedido. “Que a nossa família nunca se separe”.

Em um de seus aniversários, perguntei o que ela gostaria de ganhar. “Qualquer coisa, papai. Eu gosto de tudo”, ela disse. Foram as minhas filhas que me ensinaram o valor das coisas. Ou melhor, me ensinaram novamente. Eu havia esquecido. Quando era pequeno, qualquer galho de árvore virava uma espada. Qualquer pedra era também uma nave, ou um carrinho.

Minha filha estava ainda com o pijama lambuzado de geleia de morango e eu me sentia um homem feliz. A quarentena tem sido longa e cansativa, mas cheia de momentos que, olhando em retrospecto, tenho certeza que sentirei saudades. Quantas vezes eu estava trabalhando demais, pedindo aos céus um tempo em casa com a família? Olho para minha filha e me vejo de novo, com oito anos, achando a vida a coisa mais divertida do mundo.

Continua depois da publicidade

O escritor Kurt Vonnegut, costumava dizer que a única missão de uma pessoa na terra é esta: fazer outras pessoas apreciarem estarem vivas, pelo menos por alguns segundos.

“As pessoas sempre me perguntam se eu conheço alguém que foi capaz disso”, ele dizia.

“Os Beatles. Os Beatles conseguiram”.

Leia mais crônicas de Piangers.