A sensação mais deliciosa é a de sair do portão do prédio, em um final de dia fresco, e simplesmente sair correndo. Subo uma rua arborizada, 500 metros, viro à direita em direção à ciclovia, mais 500 metros, corro cinco quilômetros até o parque mais próximo, dou algumas voltas. Na volta para casa, improviso. Em alguns dias volto por ruas planas, em outros pela rua mais íngreme do bairro. Correr foi uma forma de ter um momento só meu durante a pandemia. Sem filhos, sem esposa, sem interrupção, sem e-mail, sem notificação.
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Usei um mesmo tênis por cerca de dois anos, até que meus dedos mínimos saíram por buracos laterais e o tênis virou um trapo. Tênis de corrida são caros, cerca de R$ 800, e demorei até achar algum que não me machucasse. Alguns tênis causam lesões (tive dores nos tendões) e outros cutucam você até sangrar. Depois que você encontra um tênis que não te machuca, você não quer saber de outra coisa. É como se fosse um novo amigo.
A corrida é, portanto, uma prática não solitária. Estão comigo, naqueles dez quilômetros, meu tênis confortável; meus conhecidos de corrida com os quais nunca troquei uma palavra além de “opa”, quando nos cruzamos; e meus podcasts. Por vezes, penso: “aquele cara não veio hoje”, mas nem sei o nome do cara, apenas o encontro quase todos os dias, na ciclovia.
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Sei quais casas têm cachorro chato, sei que horas as crianças voltam da escola a pé, sei quais ruas estão muito movimentadas naquele momento, sei os dias certos em que jovens treinam taekendô no parque. Somos uma pequena comunidade, não delimitada por bairro, nem predileções, nem mesmo afinidades. Somos paisagem uns para os outros.
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Depois de alguns meses correndo, fiquei magro. Minhas pernas estão fortes, mas meus braços, peito e rosto, esqueléticos. Minha mãe se preocupa, minha esposa diz que estou feio, minhas filhas insistem para que eu coma mais. Amigos me dizem para fazer musculação, mas acho chato. O que gosto mesmo é, em um fim de tarde fresco, pegar meu tênis favorito, sair pelo portão do prédio, e simplesmente sair correndo.
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