Ainda era verão, estávamos na praia, começaram a chegar as primeiras notícias do vírus. O Fábio Haag estava chegando de Londres e levou a família para nos ver. Ele levou uma daquelas câmeras retrô, com filme. Tirávamos fotos na beira do mar com nossos filhos sorrindo, sem saber como as fotos estavam ficando. Comentamos que, essa coisa do vírus poderia chegar logo aqui, mas sempre terminávamos o papo com “vai ficar tudo bem”.
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Até semana passada minha mãe achava que tudo era histeria coletiva. Dava risada quando eu falava da importância dela se resguardar, ficar em casa, comprar alimentos para passar um tempo sem ir ao supermercado. “Vocês são muito preocupados”, ela dizia. Começou a sentir de verdade na última semana, quando fecharam a academia. Viu menos gente nas ruas. Conversou com amigas que estão ficando em casa. Mandou mensagem: “Estou cancelando todos os compromissos. Agora, só caminhadas sozinha, Netflix e livros”.
Estou com minhas meninas em casa desde o domingo passado, com ocasionais saídas para supermercado, farmácia e passeios no parque. Quando encontramos conhecidos temos vontade de abraçá-los, mas evitamos. Álcool gel no bolso, tomamos banho assim que chegamos em casa. A escola das meninas só vai fechar semana que vem, mas nosso home schooling já está a todo vapor. Temos horário de matemática, português, inglês, música e exercícios. Escondemos das nossas meninas os nossos medos mais horríveis, aqueles que nos acometem de madrugada.
Dos vídeos que chegam da Itália o que mais me tocou foi do obituário nos jornais. Em janeiro tinha uma página, agora são dez. Dez páginas de fotos minúsculas, pequenos textos de homenagem da família, avós e avôs que não brincarão com os netos, pais que deixarão saudades, senhores e senhoras que os italianos não verão mais nas praças, pegando sol pela manhã. De todas as barbaridades que a gente ouviu no meio dessa crise, a que mais me magoa é “só morre idoso”. Tenho idosos que eu amo e, mesmo se não tivesse, sei que alguém tem.
“Só morre idoso” mostra nosso desprezo pelos mais velhos, nossa falta de gratidão com quem nos cuidou, nossa falta de respeito com quem nos deu uma vida melhor. No fim das contas é uma estupidez com todos nós que temos a esperança de envelhecer com dignidade.
Liguei para o Fábio na última semana, para saber como estão. As escolas estão fechando, eles estão tomando cuidado, pois têm muitos amigos no chamado “grupo de risco”. Perguntei das fotos que tiramos na beira do mar. “Acabei abrindo a câmera de um jeito errado e o filme queimou praticamente todo!”, ele me disse, lamentando. Sobraram apenas três fotos, das crianças. Em uma delas as crianças estão sorrindo, fazendo joinha com a mão. É como quem diz “vai ficar tudo bem”. Vai ficar tudo bem.
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