No dia em que descobriu que estava com câncer, minha mãe me disse: “como eu tenho sorte!”.  Estávamos eu e minha irmã desolados, e minha mãe nos disse: “Como eu sou sortuda!”. Ficamos indignados. Como ela poderia dizer que tem sorte, no dia que descobriu estar com câncer?

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Minha mãe nos disse: “A médica tinha, em cima da mesa dela, uma pilha de exames de outros pacientes. O primeiro exame era de uma menina de 29 anos. Pude ler, claramente, que esta menina estava com câncer nível 4, um câncer mais grave do que o meu. E pude ver, claramente, que ela tinha 29 anos. Ela era uma menina, com a vida toda pela frente. Eu tenho quase 70 anos. Já vivi boa parte da minha vida. Ter câncer agora não é um grande problema. Vou fazer o que os médicos disserem, vou me curar, ou talvez ir embora. Mas ver aquele exame daquela menina de 29 anos me fez pensar: ‘como eu tenho sorte’”.

Sobre sorte. Uma vez um amigo me contou sobre esta empresa que contratava apenas pessoas sortudas. Perguntavam para as pessoas se elas se consideravam sortudas ou não. Depois disso, davam para as pessoas algumas cartelas cheias de números minúsculos, e diziam que as cartelas que tivessem o número 247 seriam selecionadas para a próxima fase do processo seletivo. As pessoas que se diziam “sortudas” tinham mais do que o dobro de chance de encontrar o número 247 do que aquelas que não se consideravam sortudas. Perguntei ao meu amigo se ele acreditava que era algum tipo de energia ou sorte mística. Ele me disse: “Todas as cartelas tinham o número 247. As pessoas  que se consideram sortudas estavam apenas prestando mais atenção nas chances que a vida dá”.

Esta semana descobrimos que o câncer da minha mãe desapareceu, depois do tratamento. Talvez, ela seja mesmo sortuda. Ficamos muito felizes, obviamente. Minha mãe terá que nos aturar por mais algum tempo, para nossa alegria. Comemoramos em uma ligação telefônica cheia de gritos de alegria. Uma ligação telefônica que nos uniu, mais de 300 quilômetros distantes. Por um segundo, meu pensamento passou por aquela menina de 29 anos, com um câncer nível 4. Desejei, por algum momento, que ela tenha sorte. A sorte de comemorar a cura um dia. A sorte de ter uma vida longa, e filhos. E, acima de tudo, a sorte de conseguir perceber a sorte, mesmo onde é difícil enxergar.

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