Não tenho mágoas de minha mãe por ela ter me batido, mas lembro de cada uma das vezes. Lembro que três vezes ela me bateu com um cinto, no meu quarto. Não lembro o que eu tinha feito em nenhuma das vezes. Alguma molecagem. Da primeira vez, no final do dia, ela me mandou para o quarto, onde esperei sabendo que viria bronca. Ela entrou com um cinto, e me lembro que me bateu com raiva. Eu gritava “Não, mãe, por favor, eu já aprendi a lição”, mas ela batia forte. Não sei se era a raiva que nos dá por trabalhar tanto, a raiva de estar cansada, a raiva de ter um filho que não obedeceu uma ordem importante. Juro que não lembro o que eu tinha feito. Mas lembro da raiva.

Continua depois da publicidade

> Receba as principais notícias de Santa Catarina pelo WhatsApp

Talvez fosse um pouco da raiva de ser mãe solo, a raiva de ter que fazer tudo sozinha. Talvez um pouco da raiva de eu ter uma vida tão melhor do que a dela, quando ela era criança, e mesmo assim eu não perceber. Uma raiva da minha ingratidão. Se minha mãe me bateu, foi porque apanhou da própria mãe, e assim por diante. Quanto mais voltamos no tempo, mais perversos eram os castigos. Cada geração foi aliviando a palmada, mas ao mesmo tempo sentindo raiva da ingratidão dos filhos, que não percebem como são afortunados.

> Do que eu falo quando eu falo de corrida

Ela deve ter colocado tudo pra fora aquele dia, porque nunca mais me bateu daquele jeito. Pediu desculpas. Lembro que, em outras vezes, ela não queria me bater. Entrava no quarto com o cinto, eu sabia que ia apanhar, ela dava algumas batidas fracas e eu fingia que eram fortíssimas, gritava como se estivesse doendo. Ela saía do quarto e eu ia dormir, ambos satisfeitos com nosso teatrinho.

Continua depois da publicidade

> Dobra no tempo

Acho que foi um fenômeno dos anos 1980, a proliferação de literatura sobre criação de filhos. A maioria dos autores recomendava algumas palmadas e castigos. Mesmo as mães que não queriam bater nos filhos se sentiam obrigadas pois, se não batessem, os filhos cresceriam sem limites. (Acho irônico que pais passem anos impondo limites rígidos aos filhos mas, ao mesmo tempo, achem bonito quando um atleta ou empreendedor “supera seus limites”).

> Leia outras colunas de Marcos Piangers

Todos nós, talvez, levamos algumas palmadas quando criança. Talvez, não temos mágoas de nossos pais, achamos que foi importante apanhar. Mas não nos tornamos boas pessoas por causa dos castigos. Nos tornamos boas pessoas APESAR dos castigos. Respeitamos e admiramos nossos pais por outros motivos. Inclusive, por nos baterem sem querer nos bater. Respeitamos e amamos nossos pais por terem feito aquilo desejando o nosso melhor. Ou seja: o que nos educou foi o amor deles, não a rigidez.

Leia também:

> SC atinge 75% da população vacinada com duas doses contra a Covid

> Último hotel icônico de Balneário Camboriú terá arranha-céu

> BBB 22: confira as redes sociais dos participantes