Fiquei, obviamente, bastante aliviado quando vi que a taxa de mortalidade do coronavírus para crianças era baixíssima. Minhas filhas estão a salvo, pensei. E, se sobreviverem as crianças, sobreviveremos todos, de alguma maneira. Visto que as crianças, por mais que por vezes absorvam nossos piores hábitos, costumam ser o nosso melhor.
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Lembro da Aurora minúscula, dois ou três anos, sensibilizada com as pessoas que nos pediram dinheiro no centro. Entregava para os outros todo o dinheiro do picolé. Ele tá com fome, pai, me falava. Quantas vezes ela me dedurou nos semáforos? Eu dizia “estou sem dinheiro” para o pedinte e ela gritava no banco de trás: “tem moedas no porta-luva!”. Íamos a pé para escola e ela cumprimentava todas as pessoas, sem distinção. Abraçava os moradores de rua e brincava com seus cachorros malcheirosos – e eu olhava aquilo desesperado. As crianças tem um senso de comunidade, de inclusão. Não veem as diferenças, se é ser vivo é amigo. E, claro, precisamos ensinar que nem tudo no mundo é amistoso.
As crianças tem um senso de comunidade, de inclusão. Não veem as diferenças, se é ser vivo é amigo.
Mas vez ou outra lembramos de generosidade infantil e entendemos que todos somos um. Alguns sentem isso no natal, ou depois de um sermão na igreja. Outros despertam para a caridade nos momentos difíceis, quando passamos por desafios coletivos, nas tragédias. As tragédias nos lembram da nossa própria mortalidade. Isso é profundamente sensibilizante. Nossa morte dá sentido à nossa vida. Quando lembramos que um dia vamos embora daqui, percebemos o que importa de verdade na vida. Se é um ser vivo, é um amigo.
Quando lembramos que um dia vamos embora daqui, percebemos o que importa de verdade na vida. Se é um ser vivo, é um amigo.
Assim como estar em um avião que passa por uma área de turbulência nos faz devotos de enorme fé, as notícias sobre pandemias nos conectam com o que somos na essência. Se amanhã ou depois as ruas forem tomadas daquele vazio que vemos apenas em filmes, nem carros, nem pessoas, nem cachorros, nem comida nos mercados, nem nada que lembre o que um dia chamamos de civilização, ainda assim, uma coisa poderá ser diferente dos filmes: poderemos ser mais humanos, mais generosos, menos egoistas. Está aí uma diferença das pessoas dos filmes para as pessoas reais: nas grandes tragédias, costumamos nos ajudar mais. Nos terremotos, enchentes, incêndios, nos momentos de desespero dos outros, abrimos mão do que é nosso e dividimos. A bondade é contagiosa. Se espalha e se multiplica. Perto de perdermos tudo costumamos dividir o pouco que restou. É isso que nos faz gente. É isso o que nos trouxe até aqui. É isso que nos ajuda sempre a continuar.
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