O Ponto da discórdia que tornou a decisão imprevisível. Foi o momento mais tenso da decisão de 2000. Poderia ter mudado o desfecho daquela final. O relógio no canto da quadra central tinha acabado de marcar três horas de disputa. Gustavo Kuerten liderava o placar com 2 sets a 1 (6/2, 6/3 e 2/6) e a parcial do quarto set mostrava 5×4 para Guga com dois break points a seu favor, 15/40, no saque do sueco Magnus Norman. Naquele momento, os breaks eram match points, que significavam duas chances do ponto do título, o ponto do bicampeonato. O ambiente se transformou. Na Philippe Chatrier havia silêncio e tensão. Um erro de Norman e Guga seria o campeão daquele ano.
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Na troca, no fundo de quadra, o sueco arrisca com uma direita aberta. A bola caprichosamente cai no limite da dúvida entre estar dentro ou fora. Será que triscou a linha? Guga, convicto, caminha para a rede para cumprimentar o adversário e comemorar a conquista. Só que o árbitro de cadeira, o francês Francois Pareaut, não concorda e desce para verificar e apontar bola dentro.

Foi o momento em que a decisão de Roland Garros 2000 se tornou uma verdadeira tormenta para Gustavo Kuerten, que não acreditava e não aceitava ainda ter que estar em quadra para jogar pontos, games e seguir lutando pelo bi de Roland Garros.

“Até hoje eu lembro de eu caminhando pra frente pra cumprimentar e o ao mesmo tempo o juiz começa a descer e eu começo a suar frio. Mas tudo bem. ‘Tá tranquilo que ele vai lá e vai encontrar (a marca certa).’ E pra mim ainda a convicção é gigantesca de que ele foi na marca errada, porque senão eu teria esperado ele pra olhar a marca, pra conferirmos juntos. Quando ele me chama pra vir pra trás, eu já sei que ele vai dar a bola boa. Aí começa sim a envolver a parte física. Porque, do primeiro match point até o último, foram 50 minutos. E além desse tempero físico, tem ainda o coração e a emoção que tá o tempo todo naquele nível máximo, que é match point pra cá, volta pra lá… no máximo a cada três minutos tinha um match point na mesa. Então não dá espaço pra desmotivar. O que não podia acontecer era eu perder aquele quarto set.”
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Entre o "ponto da discórdia" e a vitória final, que acabou vindo em 3×1, no tie-break do quarto set(8/6), foram, na verdade, exatos mais 43 minutos de jogo e outros 10 match points. E em alguns momentos a taça parecia vir para as mãos de Guga, mas em outros parecia escapar.
“Dá pra considerar que é um Roland Garros que se pra ele (Magnus Norman) bateu na trave, pra mim seria muito mais catastrófico… imagina 11 match points e perder o jogo, ia ser de chorar até hoje.”
A estratégia era usar a experiência e fazer um jogo rápido
Gustavo Kuerten havia jogado 10 sets entre as quartas e a semifinal. Norman, apenas sete – perdeu somente um para o russo Marat Safin, nas quartas de final. As batalhas diante de Kafelnikov e Ferrero tinham sido desgastantes para o catarinense. Mentalmente e fisicamente. Esse era o receio para a decisão. Norman estava mais “fresco” de pernas e talvez até mais seguro. No acumulado das duas semanas, o sueco havia vencido 18 sets e perdido um, do total de 19 que foram necessários para alcançar a finalíssima.
O caminho havia sido bem mais complicado para Guga. Foram 23 sets jogados, com 18 vencidos e cinco perdidos. Com mais tempo em quadra, o cansaço poderia pesar.
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“Quando chega na final, de arrasto com 10 sets seguidos, na minha cabeça só tinha uma chance: ‘o jogo não podia se estender’. Sendo mais objetivo, não podia entrar para esse nível de cansaço de esforço extremo de muita força física, que não dá. 'O que eu podia levar a meu favor?' Obviamente eu relacionei o fato de ele nunca ter ido a uma final de Grand Slam. Essa era minha grande vantagem. Naquela época eu pensei: ‘poxa, eu vou entrar lá, eu já sei como que é.’ E comecei a imaginar ele tendo mais impacto da tensão e nervosismo da final. E foi o que aconteceu, mais do que o meu melhor sonho. Os primeiros dois sets não teve jogo! Ele tava lá duro que é uma pedra. Ele não se mexia e eu só torcendo. ‘Ô, beleza, vai acabar logo! Que coisa mais linda do mundo.’ Era o melhor cenário possível. E lá dentro só rezando. ‘Guguinha faz o dever de casa e não dá bobeira, que a primeira isca ele vai vir que nem um leão.’”
Norman era o grande rival de Guga no saibro naquele ano
O sueco Magnus Norman é da mesma geração. Nascido em 1976, como o brasileiro, o adversário conhecia muito bem Gustavo Kuerten. Chegava a Paris com credencial fortíssima: campeão do Masters de Roma, na Itália, vencendo na final justamente Guga, com o placar de 3×1.

Os dois haviam se cruzado também em Hamburgo, na Alemanha. Não foi uma partida valendo taça. Guga venceu Norman por 2×0 nas quartas de final. Conquistou aquele Masters batendo o russo Marat Safin, outro rival poderoso. Estas memórias dos jogos entre eles na temporada estavam presentes na batalha mental da decisão. Roland Garros reunia com precisão naquela final os dois melhores jogadores dos torneios mais importantes de saibro em 2000.
“Foi sempre um cara que trazia um lance assim que a coisa complicava. Eu cheguei no profissional antes do que ele. Ele ficou pra trás, teve um problema, uns impedimentos de saúde ao longo do caminho, que ele foi rodando com um ano pelo menos de atraso na minha trajetória. E, de repente, naquele ano, sou eu de um lado e ele do outro, os maiores favoritos. Não tinha dúvida. Nós ficamos meio que medindo. 'Quando é que isso vai acontecer?' O fato de ter jogado Roma, perdido, em Hamburgo ganho dele – mas aí neste caso, nas quartas de Hamburgo, ele que largou a partida antes, que já tava também esgotado. Aí a gente tava esperando. Eu lembro bem. Eu tinha certeza que se fosse pra ser campeão precisava passar por ele.”
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Norman não era um jogador de ataque e pancadaria como Yevgeny Kafelnikov e Juan Carlos Ferrero. O sueco era muito consistente – errava pouco – e gostava de contra-atacar, o que era um perigo para a agressividade de Gustavo Kuerten.
“Jeu, set et match! Kuerten!”

Depois da discussão com o árbitro de cadeira, Guga se manteve em quadra, firme na batalha. Mas o mental estava ainda no ponto polêmico que gerou a “hora extra”. Em algumas trocas de lado, ao passar pelo árbitro, o catarinense ainda argumentava alguma coisa com Francois Pareaut.
“Olhava pro juiz me dava uma raiva e falava ‘sabe de quem que é a culpa?’ Eu queria olhar e achar uma resposta e, no fundo, um culpado pra eu ainda estar envolvido naquela aventura. A única coisa que me fez sustentar é que em nenhum momento eu fiquei atrás (no placar).”
A verdade é que Gustavo Kuerten queria demais vencer Roland Garros novamente. E não iria deixar escapar a oportunidade. A vontade de vencer mais uma vez em Paris acabou desequilibrando.
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“Por uma insistência de querer ganhar tanto Roland Garros, por um merecimento, aquele que a gente olha pra trás e vê as horas e horas que eu e o Larri a gente ficava lá, eu falava ‘precisa ser nosso! Tem que ser nosso! Porque a gente merece!’ Essa sensação do merecimento ela é muito importante pro atleta nas horas de ter que se autossustentar e ter força e confiança. Foi isso que sustentou aquele jogo, mais do que a parte física. Eu fiquei na defensiva. Eu ficava ali e ele vai ter que errar. Era muito match point. Foram 11 match points. ‘Uma hora o cara tem que errar, pô.’ E o cara não errava. Não dava pra ser tão agressivo. Eu batia de um lado e do outro e ele gostava. Aquela hora extra foi vencida no coração. Se eu soubesse que seria mais uma hora, eu teria me apavorado. Isso é fascinante da nossa capacidade.”
Nas palavras do bicampeão do Aberto da França a clareza de como a entrega fez a diferença, segurou Guga forte em quadra. Lutando entre o 5×4, o primeiro match point, a frustração, a raiva, o turbilhão de emoções, e o décimo primeiro match point, que teve uma mesma bola aberta de direita de Norman, que foi pra fora, desta vez com um sonoro “OUT” cantado pelo fiscal de linha. Era a vitória no jogo e a conquista do Bicampeoato.
Gustavo Kuerten foi bicampeão de Roland Garros em 11 de junho de 2000. Esta semana, o catarinense reuniu a imprensa nacional em videoconferência para revisitar aquela conquista e contar um pouco das memórias do bicampeonato.
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