Grupos organizados elevaram a pressão sobre vereadores e o prefeito de Blumenau exigindo a implantação do “tratamento precoce” contra Covid-19 na rede pública. Abastecidos por informações distorcidas que circulam em redes sociais e por meia dúzia de médicos que emprestam credibilidade ao movimento, eles insistem, inclusive com abaixo-assinado, que o chamado “kit Covid” seria mais eficaz até do que vacinas para resolver a superlotação de hospitais. Tese que nega a gravidade da doença e ofende profissionais da linha de frente.

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— Não saberia dar um percentual, mas a maioria dos pacientes em UTI tomou algum dos medicamentos. Vários tomaram todos os remédios do kit — relata o médico cirurgião Fábio Luiz Arante, plantonista de UTIs Covid.

Ivermectina é o medicamento mais citado por pacientes que dão entrada em hospitais da região. Hidroxicloroquina perdeu força desde o ano passado, mas ainda há quem use e vá parar numa UTI de qualquer maneira. Nas variações do coquetel ainda entram azitromicina, nitazoxanida, vitamina D e zinco. Não há estudos científicos que atestem a eficácia desses remédios. Pelo contrário.

— Me sinto muito mal quando vejo um colega médico fazer esse tipo de comentário em relação ao uso desses medicamentos para a Covid — lamenta um intensivista do Hospital Santa Isabel que falou sob a condição de anonimato.

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Além do Santa Isabel, a coluna procurou os hospitais Santo Antônio e Santa Catarina. Nenhuma das instituições quis manifestar-se sobre o assunto ou informar detalhes sobre a relação entre medicamentos e internações. O silêncio institucional acaba por envolver também os profissionais de saúde, que temem virar alvo da disputa política em torno dos medicamentos defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro.

Silêncio que ajuda a reverberar a narrativa do “tratamento precoce”. No início de março, um médico ocupou a tribuna da Câmara de Vereadores de Blumenau para propagandear informações falsas sobre os medicamentos. Nenhum especialista ou instituição procurou o Legislativo para replicar. Na semana passada, os vereadores aprovaram a realização de uma audiência pública sobre o assunto, ainda sem data. Há parlamentares preocupados em equilibrar as diferentes visões sobre a questão. Outros já falam em propor leis que obriguem o receituário.

No Executivo, a posição é respeitar a autonomia do médico. Aqueles que desejam receitar os medicamentos têm liberdade para fazê-lo. A maioria, no entanto, não o faz. Está encalhado o estoque de 36 mil doses de cloroquina, solicitado pela prefeitura ao Ministério da Saúde no ano passado como forma de aplacar críticas dos defensores fervorosos de Bolsonaro.

Entidades médicas

O Conselho Federal de Medicina (CFM) adotou postura semelhante à da prefeitura de Blumenau: cabe ao médico escolher o que deve e o que não deve receitar ao paciente. Em Santa Catarina, o conselho regional ignorou o kit Covid ao abordar tratamentos para o coronavírus.

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> “Somos obrigados a escolher, ou vai morrer mais gente”, diz médica sobre fila da UTI.

A Associação Médica Brasileira (AMB) emitiu nota, no dia 23 de março, dizendo que o uso desses medicamentos deve ser “banido” por ausência de eficácia. Na segunda-feira (29), porém, publicou um comunicado esclarecendo que 21 das 81 sociedades médicas representantes de especialidades que compõem a AMB discordam desse posicionamento.

Marcos Nemetz é cirurgião e presidente da Comissão de Ética do Hospital Santa Isabel. Ele vem acompanhando de perto as orientações de entidades médicas sobre a Covid-19 e avalia que a desinformação tem prejudicado o trabalho dos profissionais.

— Está todo mundo vendo que não tem eficácia, mas não há apoio unânime. É muita fake news, falta de leitura sobre o que está saindo. Aqui no Brasil ainda se insiste nisso porque isolamento social, ninguém faz. Vacina, não está vindo na proporção desejada. Então tem que ficar insistindo em alguma coisa pra dar uma resposta à população — lamenta.

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Evidência anedótica

O fato de que a maioria das pessoas não desenvolve a forma grave da Covid-19 ajuda a manter viva a teoria do tratamento precoce. Pacientes tomam os medicamentos e se recuperam. Médicos receitam a grupos de pessoas e observam índices altos de melhora no quadro. São as chamadas “evidências anedóticas”, baseadas em informações subjetivas.

— Se eu pegar água do Rio Benedito e dar para 50 pessoas, 90% vão se curar. Aí vou dizer que foi a água que curou? Sinceramente, ficaria muito feliz que funcionasse, mas não funciona — exemplifica o médico Fábio Arante.

Uma lista com os telefones de médicos que receitam o kit Covid em Blumenau circula por WhatsApp. Dos cinco relacionados, três são ginecologistas, um é otorrinolaringologista e uma é médica do trabalho. São raros os defensores do protocolo ineficaz entre quem atua diretamente com a Covid-19, como infectologistas, epidemiologistas, pneumologistas ou médicos de UTI.

O infectologista Amaury Mielle critica colegas que propagandeiam os supostos benefícios do “tratamento precoce”:

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— A partir do momento em que a ideologia tomou a frente dos debates sobre a Covid-19, nos deparamos com médicos que saíram do anonimato para defender tratamentos anedóticos.

Mielle participa de um grupo de estudos com médicos e pesquisadores brasileiros. Acompanha os artigos científicos mais recentes e garante: todas as pesquisas de qualidade demonstram a inexistência do tratamento para o coronavírus nas fases iniciais. Caso existisse, o que explica país nenhum tê-lo adotado?

Efeitos adversos

Há registros de efeitos adversos severos entre pacientes que fizeram uso em excesso de medicamentos como ivermectina e hidroxicloroquina. O jornal O Estado de S. Paulo revelou que cinco pessoas precisaram de transplante de fígado em dois hospitais ligados à Universidade de São Paulo (USP). No Rio Grande do Sul, três pessoas morreram após serem submetidas a uma nebulização com hidroxicloroquina.

Nas UTIs do Vale do Itajaí, médicos ouvidos pela coluna observaram casos de arritmia cardíaca (efeito colateral da cloroquina) e alteração da função hepática em pacientes que fizeram uso do kit Covid, mas não é possível associar os problemas diretamente aos remédios.

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Pressão

Nos últimos dias, um abaixo-assinado online pressionando vereadores e prefeito a “implantar o tratamento precoce” e obrigar agentes de saúde a disseminar os supostos benefícios do kit Covid reuniu mais de 3 mil assinaturas antes de ser retirado do ar. Carros circulam pelo Vale do Itajaí com o adesivo “Ivermectina Salva Vidas”. Notícias falsas ou distorcidas sobre o suposto sucesso de Porto Feliz ou de Rancho Queimado são muito populares entre usuários de redes sociais na região.

O debate não é sobre saúde ou ciência, é político-ideológico. Mas se instituições e profissionais de saúde sérios não participarem dele, a política tratará de encontrar uma solução que pacifique os ânimos. E ela pode não ser boa nem para a ciência e nem para a saúde.

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