Foi uma madrugada de agonia. Mais uma para o homem que há dois meses lutava contra a Covid-19 num leito de terapia intensiva do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. Os familiares estavam cientes de que havia poucas esperanças.

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Nos estertores da vida, as únicas companhias eram os enfermeiros, médicos e fisioterapeutas. Naquele início de manhã, estava de plantão a enfermeira e supervisora de UTI Dara Taylana Bachmann Kreuch, 24 anos. Diante do quadro irreversível e do sofrimento evidente do paciente, ela despiu-se da frieza que protege quem vê a morte quase todo dia, tocou a mão do idoso, rezou e chorou. Prometeu que confortaria quem ficava. O homem morreu às 6h. Comunicada, a esposa chegou em poucos minutos.

— A senhorinha idosa veio com uma sacola de roupas pedindo que a gente não deixasse o amor da vida dela ser enterrado pelado. Foi muito difícil. O corpo estava muito inchado, mas vestimos as roupas nele, pusemos uma flor na mão e preparamos tudo. Só a aliança não coube no dedo. Aquele zíper (do saco onde são depositados os corpos) foi um dos mais difíceis que já fechei na minha vida.

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O tratamento humanizado fora, infelizmente, exceção. Seria impossível para as equipes de saúde atenderem a pedidos semelhantes em todos os casos. São óbitos demais. Nus, os corpos das vítimas do coronavírus são envoltos em dois sacos plásticos. Depois, vão direto para o caixão, que sai lacrado do hospital para nunca mais ser aberto. O protocolo de biossegurança é para evitar novas contaminações.

Para a família, há só uma oportunidade de despedida. Depois do acolhimento pela equipe de plantão, o Santa Isabel autoriza que a pessoa observe o corpo através de um vidro. Naquele dia, a viúva, confortada pelo gesto dos profissionais, acariciou a vidraça da UTI como se tocasse o rosto do marido.

— Esses 10 minutos são o tempo de velório que as famílias têm — constata Dara.

A maioria dos parentes chega desprevenida ao hospital. Quando são informados de que não haverá tempo para preparativos adicionais, desabam. Na tentativa de aliviar a dor de um desses blumenauenses, Dara pegou o rosário que levava consigo e depositou junto ao corpo do paciente. Como os pedidos repetiam-se, passou a levar rosários de sobra para os plantões.

— Achei muito bonitas as palmas para os profissionais de saúde, mas de nada vale o carinho se continuam teimando em ser nossos pacientes. Uma entubação é muito pior do que ficar em casa ou usar máscara — lamenta.

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Ouvi o relato de Dara para uma reportagem que planejava escrever sobre o trabalho dos profissionais de saúde na linha de frente desta segunda onda da Covid-19. A força do que contou me fez mudar de ideia sobre a pauta. Julguei a descrição importante demais, ilustrativa da dor que famílias e equipes de saúde sentem neste fim de ano.

Quase 10 meses depois, o pavor do vírus desconhecido ficou para trás entre os intensivistas. A experiência com centenas de pacientes proporciona segurança às equipes, assim como a ampliação da estrutura para atendimento. O que não se ameniza é o sofrimento emocional, potencializado pelo (mau) comportamento da população do lado de fora do hospital.

— Parece que as pessoas não acreditam mais no mal que a Covid pode fazer, mas aqui dentro a gente vê essa realidade, da gravidade dos pacientes — diz Carla Francisca Santos Neves, 35 anos, também enfermeira e supervisora de UTI no Santa Isabel.

Enquanto conforta as famílias de quem se vai, Carla lembra dos filhos, de dois e sete anos de idade. Teme levar o vírus para casa. Duas colegas de profissão perderam os maridos para o coronavírus, no interior de São Paulo, de onde veio para morar em Blumenau. Agora, com as festas de fim de ano chegando, os profissionais nas UTIs pensam em como será a situação de janeiro e por quanto tempo precisarão suportar a rotina desgastante.

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— As pessoas só acreditam quando acontece próximo delas. A vida tem que continuar, as pessoas precisam trabalhar, mas elas precisam ter consciência. Se não precisa sair, não saia — resume Carla.

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Não se infectar e quebrar a corrente de transmissão do coronavírus é cuidar de si, da própria família, mas também das famílias de quem está segurando as pontas por toda a comunidade no sistema de saúde. Faça sua parte.

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