Os vereadores de Blumenau cederam 20 minutos da sessão desta quinta-feira (4) para um médico divulgar, da tribuna, informações falsas sobre a Covid-19. O ginecologista e obstetra aposentado usou tempo e recursos públicos para propagandear medicamentos que, juntos, ajudariam o sistema imunológico a combater o coronavírus. Não citou uma só fonte das informações que compartilhou. Nem precisava. Qualquer um minimamente conectado à internet já as recebeu em correntes de Whatsapp e Facebook.

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— Estou tendo a oportunidade, pela primeira vez, de colocar minha voz aqui em público. Até no Facebook eu já fui banido por cinco vezes. Minha última punição foi de 30 dias — confessou.

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Coube ao Legislativo, então, dar palco à irresponsabilidade sanitária, nas plataformas de comunicação pagas com o meu, o seu, o nosso. O autor do convite, registre-se, foi o vereador estreante Carlos Wagner (PSL), que na sessão anterior já havia defendido o tal “tratamento precoce” na tribuna.

Durante o tempo que teve para dirigir-se aos blumenauenses, o homem de 72 anos de idade emulou vídeos de YouTube que pregam milagres para resolver a crise sanitária global. Disparou recomendações sem respaldo científico e informações notadamente falsas. As mais flagrantes vão abaixo:

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1 – O Kit Covid

“O tratamento precoce não se faz somente com essa ou aquela medicação. Isoladamente, cada um deles não é capaz de fazer isso. Mas juntos, eles reduzem a carga viral”.

Fatos: até o momento, não existe tratamento precoce comprovado contra o coronavírus. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, referência internacional, não recomenda qualquer um dos medicamentos citados pelo médico blumenauense contra a Covid-19, ministrados individualmente ou em coquetel. A FDA, órgão similar à Anvisa, rejeita expressamente o uso de ivermectina e hidroxicloroquina como estratégia de combate ao coronavírus. A maior parte dos cientistas e governos descartou a hidroxicloroquina, inclusive o médico francês Didier Raoult, principal defensor do uso no início da pandemia. Quanto à ivermectina, os estudos ainda são iniciais. Os que demonstraram resultado promissor usaram doses altíssimas da substância, inviáveis para seres humanos.

Conforme a ineficácia individual dos medicamentos foi sendo comprovada, surgiu nas redes sociais a tese de que o tratamento só funcionaria na modalidade coquetel, o chamado “kit Covid”. Tampouco há prova de benefício, enquanto os riscos da automedicação crescem.

2 – Cidades-modelo

“Pode ser um desafogo para o nosso combalido sistema hospitalar, como foi em Porto Feliz (SP), Búzios (RJ), Porto Seguro (BA)”.

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Os fatos: Porto Feliz (SP), citada por 9 em cada 10 lorotas sobre “tratamento precoce”, registrou 42 mortes por Covid-19. A taxa de mortalidade é de 7,9 para cada 10 mil habitantes. Maior do que a de Timbó (6,9) e Indaial (7,6), municípios do Médio Vale de porte e perfil comparáveis. As outras cidades mencionadas tampouco têm resultados muito melhores: Armação dos Búzios (RJ) registra mortalidade de 7,2 para cada 10 mil habitantes e Porto Seguro (BA), de 7,8. Ou seja, ainda que as prefeituras tivessem distribuído o “kit Covid” à população, os resultados são semelhantes aos de municípios sem essa política.

3 – O mundo adotou o kit

“Ontem, Iugoslávia, Bulgária, Panamá e outros países adotaram. Ontem! Ontem!”

Os fatos: a Iugoslávia deixou de existir como nação em 1992. Hospitais búlgaros fizeram testes com ivermectina em meados do ano passado, conforme registros em jornais europeus. O governo não distribuiu o medicamento à população. Na verdade, acaba de concluir um período de fechamento de bares, restaurantes e outros serviços para tentar reduzir a velocidade de contágio. Um dos países mais pobres da Europa, a Bulgária tem enfrentado dificuldades para vacinar a população.

O Panamá incluiu ivermectina e hidroxicloroquina em protocolos oficiais da Covid-19 entre julho e agosto de 2020, mas depois retirou. Hoje, nenhum dos dois é recomendado pelas autoridades. Por lá também há ondas de desinformação sobre os medicamentos.

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4 – Vacinas anuais

“Os vírus mudam, eles querem viver. Eles vão mudar, e as vacinas nós vamos ter que fazer como a H1N1, H1N2 e por aí afora”.

Os fatos: para que ocorram mutações, não basta que o vírus “queira”. Quanto mais ele se multiplica, infectando pessoas, maior a probabilidade de surgir uma nova variante perigosa à saúde humana. Ainda não há certeza sobre o tempo de imunidade proporcionado pelas vacinas já desenvolvidas. A comparação com os vírus da gripe não passa de palpite.

Divulgação gratuita

De tudo o que disse o médico, um dado chamou atenção — se verdadeiro. Desde março de 2020, ele e sete colegas blumenauenses teriam receitado a 20 mil pacientes o kit Covid-19. Pelo visto, a divulgação de tratamentos sem eficácia comprovada dá resultado na atração de interessados. A Câmara de Vereadores prestou-se a ajudar.

Como o leitor deve ter percebido, a coluna recusa-se a fazer o mesmo.

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