Alguém que eu amo agiu de uma forma que me desagradou. Eu fiquei magoado. No entanto, eu venho desenvolvendo algumas práticas que tem me ajudado a conviver melhor nessas situações. Mas essas práticas nasceram de uma convicção: não existe livre-arbítrio. Pelo menos não da forma que imaginamos.

Continua depois da publicidade

Mas vamos devagar. Primeiro, por que eu passei a não acreditar muito no conceito de livre-arbítrio. Não tem muito segredo: na verdade eu sou bastante influenciado pelas minhas referências. Eu li e ouvi quase tudo que o Sam Harris tinha para falar sobre o tema. E eu saí replicando os argumentos dele. Confira a seguinte história, leitor, que eu ouvi dele.

Receba notícias de Santa Catarina pelo WhatsApp

Nos anos 1960, um atirador subiu numa torre no Texas e matou várias pessoas. Demorou horas até que a polícia conseguisse matá-lo. Ele deixou uma carta relatando fortes dores de cabeça, e que logo após essas crises ele tinha esses impulsos homicidas. E ele próprio sugeriu que fizessem uma autópsia do seu cérebro. Mais um detalhe: antes de subir na torre ele matou a mãe e a esposa.

Na autópsia, encontraram um tumor do tamanho de uma bola de sinuca pressionando regiões sensíveis do cérebro.

Continua depois da publicidade

Pergunto: o homicida é assim porque escolheu ser uma pessoa má? Nesse caso parece claro um azar biológico que o transformou num monstro. Ou você acha que não há relação entre o tumor e o comportamento? Pode ser. Vamos pensar então numa situação mais rotineira, em que aparentemente não há nada biológico envolvido.

Quando ficamos indignados com alguém, supomos que a pessoa poderia ter agido de outra forma. Que ela poderia ter decidido diferente. No entanto, considere o seguinte: a educação, a cultura, o ambiente, os traumas que qualquer ser humano já teve. Adicione a isso o DNA e todas as características biológicas que ela herdou. Nada disso foi escolha dessa pessoa.

Não tente ser o melhor

E eu estou convencido de que, toda decisão que ela toma, é consequência de anos e anos acumulados de formação. Você realmente acredita que ela tinha o livre-arbítrio para ter agido diferente?

Isso não significa, creio, que não possamos mudar. Mas será que a própria determinação de mudar também não está relacionada com tudo que aconteceu até agora na sua vida e nas suas células? Todo obeso mórbido, por exemplo, tem à sua disposição o livre-arbítrio para decidir emagrecer? Pode ser que sim. Ou existe algo que não sabemos que simplesmente o impede de perceber o óbvio?

Continua depois da publicidade

O que me parece é que aplicamos as mesmas regras para todo mundo: acreditamos que todo ser humano tem a capacidade de fazer suas escolhas da mesma forma que faríamos – ou melhor: de forma ponderada, idealizada de acordo com as normas vigentes ou mais adequadas.

Admito que não tenho certeza que o livre-arbítrio de fato não exista. Afinal de contas, como lembrava Nelson Rodrigues, a consciência social do brasileiro é medo da polícia. Conseguimos moldar comportamentos com base em punições e incentivos. Nosso sistema de justiça é todo amparado nessa ideia milenar. Por isso talvez não valha a pena debater a existência ou não.

Escrever para pensar

O ponto mais importante, na prática, é aceitar que, devido às condições de cada indivíduo, aquilo que ele fez era o que você faria se estivesse no lugar dele – com os genes dele, com tudo aquilo que ele vivenciou desde o útero. Isso tem sido libertador para mim – entender que o comportamento alheio é resultado de toda uma vida, e não de uma questão pessoal, ou de um capricho do momento.

Alguém que eu amo agiu de uma forma que me desagradou. Eu fiquei magoado, mas logo ignorei. Pois além da aparente impossibilidade do livre-arbítrio, amamos alguém justamente em função das características que fazem essa pessoa ser e agir assim. É o que torna ela única. Será que queremos mesmo que ela seja diferente?

Continua depois da publicidade