A pandemia precipitou tendências tecnológicas e mudou a prioridade das empresas, que terão que deixar de sonhar em ser “unicórnio” para ser “camelo”, com mais resiliência. Essa análise e alerta são do professor de estratégia da Fundação Dom Cabral, Paulo Vicente Alves, um dos palestrantes da Expogestão Digital 2020, que será de 27 a 29 deste mês e está com inscrições abertas. Engenheiro mecânico pelo Instituto Militar de Engenharia, PhD. e doutor em administração pela Fundação Getúlio Vargas, o professor falará sobre Projeções para o século XXI, tema que também é o foco central do livro que lançou em 2019, Um século em quatro atos: uma projeção do século XXI.

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Paulo Alves tem larga experiência profissional, incluindo educação e os setores de governo, defesa, aeroespacial e energia. Como professor, ensinou nas principais instituições de negócios do Brasil e, no exterior, já deu aulas na Brown University, John Hopkins University e Insead, entre outras. Em 2012/2013 ficou em 29º lugar no prêmio Best Business Professor da The Economist Intelligence. Entre os temas que aborda nesta entrevista estão também desafios para negócios e como melhorar a educação brasileria. Confira a seguir. 

As análises que o senhor faz chamam atenção, entre outros motivos, por focar o longo prazo. Pode antecipar um pouco do que abordará na sua palestra, na Expogestão?

– Na palestra que farei na Expogestão vou chamar a atenção para cenários. Utilizo duas formas de abordar: ciclos hegemônicos e ciclos tecnológicos e uma projeção futura. Isso está modelado no meu livro. Trabalho sobre isso há 10 anos. A crise da Covid-19 está prevista no modelo do livro. Ele prediz que de 2018 a 2030 é fase de crise no capitalismo atual, que força uma reinvenção. Uma pandemia global estava na lista de riscos no período porque ela pode acontecer a qualquer momento. Podemos ter uma outra no ano que vem ou passar até 30 anos sem.

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Como avalia os impactos da pandemia na economia e na vida das pessoas?

– A pandemia precipitou tendências. Se sabia que compras online era uma tendência, que home office era uma tendência, que telemedicina e educação a distância eram tendências, mas a maioria das pessoas estava acomodada. Pensava que isso seria para daqui a 10 anos, 20 anos. Aí a pandemia foi um acelerador. Tirou a gente da zona de conforto, obrigou a repensar diversos procedimentos, tanto na vida profissional, quanto na vida pessoal. A pandemia impôs muitas mudanças.

O que a pandemia muda para as empresas?

– Particularmente, acredito que vamos sair do mantra organizacional da performance para o mantra da resiliência. Durante quase 30 anos a palavra-chave foi performance. Agora, a gente vai ter que migrar para a resiliência. Na prática, teremos que tornar as organizações mais robustas, mais resistentes, mais resilientes. A metáfora que eu tenho usado é que durante 30 anos a gente procurou unicórnio, mas na pandemia chegamos na beira do deserto e concluímos que o unicórnio não vai passar o deserto porque precisa de água. Então, agora será preciso encontrar um camelo para atravessar o deserto sem beber água durante três dias. 

Na fase da performance, a startup focava valor de US$ 1 bilhão, a empresa focava lucro, mas no meio de uma situação de risco, o camelo é mais resistente, por isso a mudança da metáfora. Uma frase minha, que eu tenho divulgado, e o professor Heiko Hosomi Spitzeck, da Fundação Dom Cabral, postou também é: Acabou a era da performance, começou a era da resiliência. Durante 30 anos, a gente focou resultado a qualquer custo, cortando gorduras, adotando o lean manufacturing, ou seja, fazendo tudo para ganhar performance. Agora vem uma situação em que as pessoas percebem que as organizações precisam ter mais resistência.

Como as empresas devem proceder para se adaptar a esse mantra da resiliência?

– É preciso considerar três padrões: curto, médio e longo prazo. No curto prazo é caixa. É preciso ter um caixa maior para aguentar o tranco que vem aí. As empresas terão que se entesourar mais. Isso diminui o retorno sobre ativos porque é dinheiro parado. Mas também força elas buscarem alternativas financeiras para melhorar a gestão de caixa, mas o caixa estará lá por uma questão de segurança para quando vier uma crise do curto prazo do nada você tenha recursos. No médio prazo, que é a criação do camelo propriamente dito, a empresa precisa pensar em seis níveis: internacionalização, inovação, sustentabilidade, melhor gestão de cadeia de suprimentos, marca e pessoas. São seis pontos para trabalhar melhor e criar essa organização “camelo”. E no longo prazo, é preciso fazer gestão de risco. As organizações descuidavam, e ainda descuidam muito da gestão de risco.

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Essa grande pandemia deixou as empresas com medo de que outra pode vir logo?

– Quando você faz gestão de risco, você relaciona quais riscos e três crivos: qual é a probabilidade de eles ocorrerem, qual é o desvio de impacto e qual é a temporalidade deles. São três filtros que a gente faz. Eu tenho a pandemia registrada em estudo em 2012, no meu livro lançado em 2019. A pandemia pode ocorrer a qualquer tempo, então passa no crivo da temporalidade. Ela pode ter um impacto gigantesco como a atual está tendo, então ela passa no crivo de impacto. O problema é probabilidade. A probabilidade dela ou é baixa ou não pode ser predita. Você não sabe quando vai chegar a próxima, pode ser no ano que vem ou daqui a 30 anos. Então ela não passa nos três crivos, mas passa em dois. Ela está sempre como um risco potencial no fundo, assim como diversos outros, entre os quais a explosão de um vulcão que lança cinzas na terra e faz dois três anos de inverno forte, um acidente nuclear ou uma guerra. 

Tudo isso causa impacto em qualquer momento, mas a probabilidade é impossível de ser predita. A gente coloca isso como um risco ou como um cenário de redução de receita. Como pode acontecer a qualquer momento, você tem que ter um colchão, uma forma de amortecer o impacto de uma perda de receita por três meses, seis meses ou um ano. Você pode fazer cálculo de probabilidade. Pandemia, a gente está tendo uma por década. Nas últimas, tivemos o ebola, HIV, Sars, Mers, H1N1. Mas vai ser em 2021 ou 2030? Não dá para saber. Essa é a dificuldade deste risco.

Das seis prioridades que o senhor recomenda no médio prazo, em quais as empresas brasileiras estão melhor?

– As palavras que estavam na pauta mas fortemente são inovação, gestão de pessoas e gestão de marcas. São as três em que as empresas estavam mais atentas. Há alguns anos se falava muito em internacionalização, mas muitas desistiram dessa prioridade. A sustentabilidade ainda é mal feita e não é colocada como gestão de risco. E a gestão de suprimento estava sendo enxuta demais, olhando menos para a gestão de risco e a qualidade. Estavam olhando somente o lado do custo.

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Por que empresas precisam melhorar a questão de suprimentos?

– A cadeia de suprimentos precisa de atenção para o risco de ser interrompida. Tivemos problemas agora, na pandemia, mas também na greve dos caminhões em 2018. Em 2015, se não me falha a memória, tivemos greve de caminhoneiros e problema de oferta de suprimentos. Toda vez que tem greve de transporte o problema aparece. Empresas ficam sem alguns produtos nas prateleiras. Acho que essa gestão de suprimentos é mal feita.

E quanto à internacionalização dos negócios?

– A gente meio que abandonou a lógica de tentar internacionalizar, exportar. Só as empresas de commodities estão fazendo isso e, mesmo assim, sem nenhuma agregação e valor. Isso tanto na área de minerais, quanto no agronegócio. E não tentam exportar serviços. Muitos afirmam: não tem condições, não consigo competir com a China, não consigo competir com nada. E também não tenta trazer indústrias para cá.

Quais setores poderiam avançar mais fácil na internacionalização?

– Em todas as áreas acredito que não poderemos avançar, mas em algumas, sim. Além do agronegócio para agroindústria, que é o caminho óbvio, eu acho que a gente pode avançar em acearia (transformar ferro em aço), na área aeroespacial.

Nas suas análises sobre o futuro, o senhor tem falado que o mundo está saindo do quinto ciclo tecnológico e indo para o sexto. Como será o sexto ciclo?

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– Podemos dividir os eixos tecnológicos em três, cinco ou 10. Eu divido em três para simplificar. O primeiro é novas fontes de energia e novos materiais, o que inclui tecnologia espacial e energia solar; o segundo é uma nova onda de robotização e inteligência artificial que se pode chamar de indústria 4.0 e transformação digital; e o terceiro é melhoria humana, isto é, aumentar a longevidade e a produtividade humana. São os três grandes eixos que a gente pode olhar. Mas eu acredito que são esses três eixos que vão mudar a tecnologia global nos próximos 50 anos.

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Olhando o Brasil, na sua avaliação quais gargalos impedem o país de ter um desenvolvimento mais dinâmico?

– Podemos resumir no guarda-chuva chamado custo Brasil. Dentro desse custo Brasil temos os custos logísticos, a segurança pública precária, custos administrativos do governo que são muito altos e os impostos são altos. Temos também custo de energia, que é muito alto no Brasil e temos, ainda, o custo da mão de obra, ou seja, a mão de obra brasileira é cara para a qualidade dela. Tudo isso pode melhorar com o uso de tecnologia. Inclusive temos um estudo na Fundação Dom Cabral sobre como a tecnologia pode ajudar na redução do custo Brasil.

Como a educação pode ser melhorada, na sua opinião?

– Na essência, acho que é preciso ganhar escala com a transformação digital. Você precisa transformar escola em estúdio, ou seja, transformar uma escola boa para mil alunos, numa escola boa para 1 milhão de alunos. Hoje, se você olhar para qualquer estado brasileiro, você tem uma escola boa, padrão, para mil alunos. Você consegue fazer isso com bons professores, boa estrutura. Mas você não consegue fazer mil escolas boas para 1 milhão de alunos porque você tem o gargalo do professor e da estrutura. Mas, com as novas tecnologias de transformação digital, ensino à distância, inteligência artificial e recursos virtuais você pode. Você pode fazer uma grande escola para 1 milhão de alunos. Dá para fazer uma para o Brasil como um todo. Eu acho que a virtualização da escola, ou a escola-estúdio é o caminho natural.

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E a nova escola para 1 milhão de alunos como seria?

– A tecnologia permite várias soluções. Temos professores robotizados, a inteligência artificial, por exemplo, que vai apontando o que o aluno precisa estudar mais. Podemos ter aulas ao vivo à distância, laboratórios de jogos virtuais e também o que alguns chamam de Hollywood contra Harvard, isto é, a pegada e apresentação de um conteúdo de forma interessante como Hollywood faz, mas com o conteúdo forte que Harvard oferece. Hoje, a educação à distância não é engajadora. Você tem que oferecer um modelo em que as pessoas se interessem em acompanhar, em maratonar uma série porque ela é interessante, ajuda a pensar. Essa evolução é muito lenta ainda. As pessoas estão pensando em sala de aula a distância. Não pensam em gamificação, em laboratórios virtuais, em professores robotizados. Isso, no Brasil, está mais forte no segmento de preparação para o vestibular.