Como toda mãe que arruma sua filha com capricho para a festinha da escola, Thaise Damiani estava animada na sexta-feira (18), em Criciúma. Cuidou dos detalhes para vestir a menina de 7 anos como a Princesa Bela. De tão orgulhosa, gravou um vídeo e compartilhou nas redes sociais.
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Minutos depois, veio o impacto. Uma seguidora respondeu: “Desculpa aí, mas vi uma macaca se coçando.”
Thaise não quis acreditar. De pronto, questionou a mulher. Mais alguns minutos e, talvez em uma tentativa frustrada e tardia de bom senso, a agressora explicou-se no inbox da rede social da mãe da criança.
– Thaise, desculpa o comentário, não era para você e sim para outra postagem. E desculpa. Pela sua resposta percebi que tem outra interpretação. Perdão pelo equívoco. Mas não era nessa interpretação e nem para você.
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Não adiantou. E com razão. Thaise já estava horrorizada e, de posse do conteúdo, foi até a delegacia de Polícia Civil fazer o registro de injúria racial.
– Estou com o coração dolorido com tudo o que aconteceu – destacou a mãe, que identificou a autora do comentário.
– Trata-se de uma prima-irmã do pai de Thaise. Logo, é parente da menina da parte do avô materno – contou.
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“Minha filha não é macaca”
O pai da criança e marido de Thaise, Fabrício Lucas, compartilhou na internet um vídeo com longo desabafo neste domingo (20).
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– Estou muito indignado desde sexta-feira. Eu estou paralisado, triste, magoado, eu só choro. Não sei o que se passou com essa mulher. A sociedade está aí, não podemos nos calar. Não vou sossegar enquanto essa mulher não pagar tudo o que fez com a minha filha. Eu admiro essas pessoas que ainda relevam essas coisas. É inadmissível isso – afirmou.
Fabrício lembrou que se trata de mais um de tantos episódios de racismo, e pediu que as pessoas reajam e denunciem.
– Muitas pessoas estão sendo xingadas. Vamos parar com isso, vamos em frente, vamos à luta, vamos nos posicionar. Racismo é crime. Vamos pegar essa causa em prol de muitos que estão calados, sofrendo. Eu quero que as pessoas se posicionem, se incentivem a dizer que devemos parar com isso – relatou.
Ele lembrou que sua esposa tem descendência italiana, assim como seus sogros, e que nunca foi vítima de qualquer atitude racista da parte deles.
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– Minha filha não é macaca. Minha filha é uma ser humana – frisou.
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Uma reflexão sobre racismo estrutural
Esse é mais um fato de tantos que ilustra o racismo estrutural dos tempos atuais.
– Ainda há muita intolerância – aponta a professora Normélia Lalau, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc).
Segundo a coordenadora do Neabi, há um racismo estrutural. Ela explica que é aquele que não nos permite dizer que estamos em pé de igualdade.
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– O que ocorreu em 13 de maio foi uma libertação até hoje não completa. O problema não foi o 13 de maio, foi o 14 de maio que se estende até hoje, uma falsa liberdade – manifesta a professora.
Normélia lamenta que a cor da pele ainda seja um fator de segregação.
– Dentro da sociedade atual o que verificamos não é só racismo, mas cor da pele. A gente consegue ver isso em todos os espaços e lugares – analisa.
Conforme a especialista, uma das lutas dos movimentos antirracismo é pela adoção de conteúdos associados à África na rotina escolar. Isso colaborará para a formação de gerações futuras mais abertas às questões da raça.
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Isso tudo colabora, conforme a professora Normélia, para uma estrutura social que permite oportunidades limitadas aos negros.
– Não que não tenham negros em condições para ocupar espaços. É a estrutura que não os permite. A estrutura está tão bem montada, é permitido sim mas vamos deixar que ele vá até essa linha, e que dessa linha ele não passe. isso é racismo estrutural – sublinha.
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Os negros de Criciúma
Normélia aponta que Criciúma é a terceira cidade com mais negros em Santa Catarina. E por isso, segundo ela, cabe lembrar onde estão os negros criciumenses.
– Enquanto estivermos caminhando somente no Centro e em alguns bairros, poucos veremos. Mas vá à periferia. Onde eles estão? É lá que vamos encontrá-los – responde.
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Conforme o Censo de 2010 do IBGE, Criciúma tem uma população de 11.640 negros. Números subestimados ainda, certamente.
Para ela, esse enraizamento da população negra nas periferias reflete uma cultura e uma história de segregação.
– É justamente o reflexo do que foi a abolição, a colonização, tem histórias de negros de Criciúma que muitos desconhecem, que eram proprietários de terras – salienta.
Ela lembra que uma das áreas mais nobres da atualidade em Criciúma, a Praça do Congresso, no Centro, era terra de negros na origem da cidade.
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– A parte central da cidade, a Praça do Congresso era de famílias negras. Quando a gente vai para o contexto real conseguimos perceber o que fizeram e ainda fazem que não permitem o direito à cidade – comenta Normélia.
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Há um bairro em Criciúma chamando Morro Estevão. É parte importante da região agrícola, onde há prósperas propriedades rurais. A professora conta que o Estevão que emprestou o nome à localidade era um escravo liberto, que herdou grande extensão de terras que deu origem àquela região. Mal orientado e ludibriado quando livre, Estevão foi cedendo os lotes à custa de poucos trocados. Terminou a vida na miséria.
– É necessário que se estude mais, que se mostre essa história que muitos desconhecem – reforça Normélia.
A estudiosa das questões raciais de Criciúma destaca que os negros tiveram papel decisivo, enquanto mão de obra, para a consolidação da grande riqueza oriunda da mineração, por exemplo.
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– Muitos negros morreram para que os mineradores enriquecessem. Daí você começa a perceber a estrutura de exploração. O povo negro é um povo que luta, que resiste, que busca mas que, de algum modo, foi inviabilizado e encurralado nas periferias – finaliza.
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