Na semana passada, ele comemorou 38 anos. Nesta, tomou o maior susto da sua vida. “Muito susto. Fui massacrado”, define o enfermeiro Jean Murilo Assunção Patrício, 38 anos, o responsável pela vacinação contra a Covid-19 sem injeção efetiva do líquido no braço de uma idosa em atendimento no começo da tarde da última segunda-feira (24) em Araranguá, no sul de Santa Catarina. O flagrante veio em vídeo gravado por um familiar da mulher, e que viralizou na cidade.

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Jean depôs ontem na delegacia de Polícia Civil em Araranguá, e diz estar mais aliviado agora. Ele garante que o Instituto Geral de Perícias (IGP) localizou a seringa com o líquido na caixa de descarte. “O IGP abriu a caixa onde são depositadas as seringas após a aplicação das vacinas, e ali estava a seringa, com o líquido. E era apenas uma nesse estado”, destaca o enfermeiro, que soube da novidade nesta quarta-feira (26), pelo seu advogado Renan Cioff.

Delegado não confirma

O delegado Thiago Reis, que cuida do caso, não confirma. – Eu participei com o IGP. Fomos até o posto, fizemos a apreensão desse material, que já ficou sob os cuidados do IGP, que iniciou a análise. Mas eu só me pronuncio a respeito quando tiver em mãos o laudo do IGP – reforça.

Onze testemunhas e o próprio Jean já foram interrogados. Um inquérito foi instaurado a partir do registro dos boletins de ocorrência na última terça-feira (25), por familiares da idosa, pelo município de Araranguá e pelo enfermeiro. – Os policiais conseguiram também identificar as imagens das câmeras do local onde ocorreu esse drive thru, não identificaram nada fora do padrão, nada anormal – revela o delegado. – E as oitivas até aqui vão de encontro à versão do interrogado – completa.

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Delegado Thiago Reis cuida do caso
Delegado Thiago Reis cuida do caso (Foto: Agora Sul / Especial)

Como tudo começou

Para Jean, foi mais um dia de trabalho voluntário junto aos vacinadores de Araranguá. O estudante da sexta fase do curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) vinha dedicando um tempo ao apoio às equipes. – Tanto que nem sei quantas vacinas já apliquei. Foram muitas – refere.

Ele estava em casa, no fim da tarde de segunda-feira, se preparando para ir à academia. – Quando percebi que começaram a chegar muitas mensagens com o tal vídeo. Fui assistir e então me desesperei. Se tivesse percebido o erro no ato, teria de pronto ido atrás dessa senhora e feito a vacina dela – salienta. – Daí começou o massacre. Muita gente foi nas minhas redes sociais, apanhou minhas fotos e começou a me agredir de diversas formas, sem ouvir minha versão – destaca Jean.

Ele precisou excluir suas redes sociais e, desde então, recorre a medicamentos para dormir e tem evitado sair de casa. – Tive que buscar atendimento de psicólogo e psiquiatra. Foi um erro, eu fiz no automático. O procedimento é o mesmo para todos, é a mesma técnica de aplicação – observa.

O passo a passo da vacinação

Jean explica o passo a passo que os vacinadores seguem. – A gente pega a dose com quem faz a aspiração da ampola, que é um outro profissional. Nós já pegamos a seringa pronta, com a dose. Coloco numa caixinha e chego no carro, converso com a pessoa e aplico. Éramos quatro vacinadores ali trabalhando – detalha. Ele lembra, ainda, que cada dose tem autonomia de dez minutos. – É o tempo que temos para vacinar a pessoa, senão depois disso a dose perde efeito – diz.

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O enfermeiro pondera que, mesmo que tivesse a má intenção denunciada por muitos, de desviar e vender vacinas (como foi acusado em redes sociais), seria tecnicamente impossível. – Se eu tenho 10 minutos a partir da aspiração da vacina para aplicar, não tem como guardar nem vacinar outra pessoa que não seja aquela autorizada pela anotadora – explica.

Quer retratação, não dinheiro

As calúnias que Jean diz ter sofrido nas redes sociais estão recolhidas e catalogadas por seus advogados. – Eu ainda estou meio anestesiado, não sei se vou processar alguém. Mas não quero tirar dinheiro de ninguém, quero só que essas pessoas se retratem – afirma.

– Nós já identificamos alguns dos autores dessas mensagens e postagens contra o Jean. Assim que for oficializada a perícia e forem concluídas as questões da apuração criminal, nós imediatamente iremos tomar as medidas necessárias para responsabilizar as pessoas que se apoiaram em notícias falsas para praticar crimes contra a honra de Jean – anuncia o advogado Renan Cioff.

A prioridade agora, conforme o advogado, é sobre os autores de áudios que foram disseminados nas horas posteriores ao vazamento do vídeo da vacina não aplicada. – Nesses áudios, referiam que Jean tinha até um local para vender as vacinas. Vamos buscar a pessoa que gravou esse áudio e causou insegurança na população de Araranguá – promete o advogado.

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“Estou tentando manter a saúde mental”

Jean conta que recebeu mais de 500 mensagens de apoio em seu WhatsApp. – Contra foram uns dois, e um apagou em seguida os xingamentos. Mas nem tudo eu li. Estou me esquivando de qualquer comentário negativo – aponta. Nem a nota de repúdio emitida pela prefeitura de Araranguá na noite de segunda-feira ele leu. – Estou tentando manter a saúde mental com os cacos que ainda tenho – define.

A origem humilde

Jean conta que é de origem pobre. – Moro numa casa que nem banheiro tem. Eu uso o banheiro da casa da frente – confidencia. – Trabalho desde os 10 anos para sobreviver.

Formado em Enfermagem pela Unisul, Jean ingressou no curso de Medicina depois de muita persistência. – Eu fiz cinco vestibulares até conseguir – sublinha. Embora a limitação financeira, o enfermeiro não tem direito a bolsa de estudos para cursar Medicina. – É que como eu já tenho uma graduação, não consigo bolsa. Eu só tenho direito a um auxílio alimentação que a UFSC fornece, de R$ 200 – revela.

Ele garante que não houve qualquer fissura na relação com a UFSC, na qual segue acadêmico. – De jeito nenhum, meu voluntariado era como enfermeiro formado, e não como estudante de Medicina. A UFSC não tem nada a ver com isso – destaca.

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“Me chamaram de garoto de programa”

Para complementar a renda, nas horas vagas entre os estudos e as atividades como freelance na enfermagem (ele atua como cuidador de idosos), Jean trabalha como marido de aluguel.

– Como eu comecei a trabalhar muito cedo, aprimorei habilidades. Faço consertos, elétrica, instalações, e isso me ajuda no sustento – conta. Mas nem essa atividade ficou escape das críticas nas redes sociais quando do episódio da vacina. – Me chamaram de garoto de programa, por não entender o que é um marido de aluguel – revela, ainda assustado com a repercussão do caso.

Jean conta que é conhecido em Araranguá. – Eu tentei cinco vezes o vestibular para Medicina, e quando consegui um pré-vestibular da cidade, onde estudei, fez uns outdoors com a minha imagem. Até isso foi usado contra mim nessa inquisição da internet. Disseram que os outdoors deviam ser destruídos, derrubados, pois era uma vergonha para a UFSC alguém que fez o que eu fiz estudar na universidade – refere, sem esconder a mágoa.

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Não desiste do voluntariado

Mesmo com todo o desgaste, Jean pretende, um dia, voltar ao voluntariado. – Eu estava de férias na faculdade. Daí resolvi ser voluntário na vacinação. Preciso agora ter calma e digerir tudo. Mas ajudar está na minha essência, então um dia eu devo voltar sim – argumenta.

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Jean já foi vacinado contra a Covid-19. – Sim, em março. Como eu sou enfermeiro e trabalho como cuidador de idosos, tive esse direito – diz. – Agora eu só quero sossego e compreensão. Eu errei e pedi perdão à família – finaliza.

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