A médica brasileira Mariangela Simão é um dos principais nomes do combate à pandemia na Organização Mundial da Saúde (OMS). Diretora-geral assistente da entidade, responsável por medicamentos, vacinas e produtos farmacêuticos, ela acompanha de perto o combate ao novo coronavírus e o avanço da imunização no mundo.

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Mariangela Simão falou NSC com exclusividade à NSC direto de Genebra, na Suíça, onde vive e trabalha. A médica já dirigiu, na OMS, o Programa das Nações Unidas para o HIV e Aids (Unaids) e o departamento de Prevenção, Direitos Humanos e Gênero. Desde 2017, responde pela área de medicamentos.

Neste momento, uma de suas principais preocupações é a falta de equidade na distribuição das vacinas. Ela ressalta a disparidade de cenários entre países que já estão vacinando adolescentes, fora do grupo de risco, enquanto há nações que não aplicaram nenhuma dose de imunizante até agora.

– Tem países de maior renda que estão começando a vacinar população acima de 16 anos, quanto temos 13 países no mundo que não receberam nenhuma vacina. 

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Mariangela criticou a perspectiva de compra de doses pela iniciativa privada, e evitou criticar as decisões do governo brasileiro em relação à aquisição de vacinas.

– É difícil opinar sobre decisões que foram tomadas em maio, junho do ano passado, quando não se sabia o que iria funcionar e você estaria comprando uma vacina que, talvez, não fosse eficaz no final.

Nesta entrevista, a diretora-assistente da OMS fala sobre o futuro das vacinas e dos planos de imunização, alerta para o risco de novas variantes, e avisa que ainda é muito cedo para prever quando sairemos da pandemia.

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Entrevista: Mariangela Simão

Em que momento ficou claro, na OMS, que o novo coronavírus seria uma ameaça global?

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Em janeiro (de 2020), quando a OMS começou a ser informada pelo governo chinês da ocorrência de casos, já chamou o Comitê Internacional de Emergências. Existe um regulamento internacional que rege como os países devem se comportar e quando a Organização Mundial de Saúde pode, por exemplo, caracterizar um surto de interesse de saúde pública internacional. Então, já no final janeiro o comitê se reuniu, e se reuniu mais de uma vez, e decidiu por recomendar à OMS que declarasse uma emergência de saúde de repercussão internacional, o que já cria condições e obrigações para os países, de relatar casos suspeitos e aumentar a vigilância. Ocorreu ainda em janeiro, o que é diferente da declaração da pandemia.

Um relatório recente da OMS diz que a pandemia poderia ser evitada se os países tivessem agido mais rápido. Olhando para um ano de pandemia, o que poderia ter sido feito diferente?

São recomendações e resultados encontrado por um painel independente, que foi chamado pela OMS para avaliar a resposta à pandemia. Ali, eles colocam que os países poderiam ter agido mais precocemente. Na verdade, tínhamos passado por outras pandemias de doenças respiratórias, com a Sars, o H1N1, mas elas não tomaram as proporções que o Sars-Cov 2 tomou. 

Em parte, esse relatório tem razão no sentido de que é um vírus de alta transmissibilidade respiratória, maior do que se conhecia, e os países, mesmo os países ricos, não estavam preparados para esse tipo de microorganismo. Um microorganismo desconhecido, totalmente novo, com uma alta transmissibilidade, e que afetava algumas pessoas mais do que as outras. Os países ricos sofreram impacto, por exemplo a Itália, com um sistema de saúde consolidado e teve o problema que teve no ano passado. O Reino Unido (também), até bem recentemente. São países que têm sistemas de saúde bastante consolidados, e que tiveram enormes dificuldades em enfrentar esse tipo de novo vírus.

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Em que medida atitudes como a do ex-presidente Donald Trump, que questionava a autoridade da OMS, interferiu no combate à pandemia?

A imensa maioria dos países tem apoio direto e irrestrito ao trabalho da OMS. O que se observou durante esse período foi uma politização muito grande do vírus, da doença, das formas de transmissão, e mesmo das ferramentas para combater. Politização em torno das medidas de saúde pública, usar máscara ou não, distanciamento físico, evitar aglomerações. Durante este um ano e pouco que passou, a ciência ainda está evoluindo no sentido de conhecer melhor o vírus e algumas coisas foram se alterando com o passar do tempo. Por exemplo, o uso consistente de máscaras, que não tinha sido preconizado desde o começo. Mas você vê que os países asiáticos, que tomaram essas medidas, tiveram diferença, como Japão e Coreia do Sul. O apoio às organizações multilaterais, e no caso à OMS, pelos governos, estava expresso nas reuniões da Assembleia Geral de Saúde. Teve mais de uma no ano passado. A OMS trabalhou com cientistas de todos os países do mundo, ao mesmo tempo em que havia oposição de um governo ou outro ao trabalho da OMS. É indesejável que isso aconteça, mas a politização da pandemia ocorreu, e ainda acontece de uma certa forma. Como quando se coloca o vírus como vindo do país X, e esse país é o vilão. Essa é uma politização da pandemia quando, na verdade, não existem bases para comprovar que isso tenha sido uma coisa intencional, mas um efeito da natureza. Não é uma questão de ‘se’ vai ter uma nova pandemia, mas de quando ela vai vir. Temos que estar mais preparados do que estamos neste momento.

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O Brasil fez as pazes com a OMS?

A OMS tem um escritório em Brasília, que tem sido muito ativo em apoio ao governo, que é o escritório da Organização Panamericana de Saúde (Opas). Então, a OMS jamais deixou de apoiar o governo brasileiro no que fosse necessário. Nesta virada deste ano houve conversa, não só com os parlamentares, do Congresso brasileiro, mas também discussões do doutor Thedros (Adanon), que é o diretor da OMS, com o novo ministro da Saúde, em mais de uma ocasião. O ministro da Saúde do Brasil participou de uma coletiva de imprensa, organizada pela OMS, para colocar a situação do país e as medidas que estavam sendo tomadas. No Ministério das Relações Exteriores, o novo ministro conversou com doutor Thedros. Tem uma aproximação maior, que é muito bem vinda para todos, porque o Brasil tem uma importância grande na América Latina e com as questões da alta transmissão comunitária, que estava se observando no país. O Brasil não é uma ilha, precisa da ajuda de outros países. E os outros países também precisam da ajuda do Brasil. Então, uma reaproximação política é muito bem-vinda.

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Estamos vendo países com a vacinação avançada, e outros com dificuldade de acesso a doses. Esta é a nova medida da desigualdade?

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A pandemia piorou aquilo que já não era bom, como as questões sociais, as dificuldades de acesso a serviços. Foi amplamente demonstrado que piorou para quem já sofria anteriormente. No caso do acesso equitativo às vacinas, não é uma questão de desigualdade, mas de equidade. Um entendimento de que ninguém está seguro enquanto algum país não estiver sob controle. E isso só vai acontecer quando tiver duas coisas plenamente em andamento. Uma é a vacinação, e a segunda é que as medidas de saúde pública continuem sendo efetivadas, como higienização das mãos, o distanciamento, busca de contatos, evitar a aglomerações, ambientes ventilados, uso de máscara. No caso do acesso às vacinas, temos uma estimativa de que já foram aplicadas globalmente 1,3 bilhão de vacinas. Apenas 17% foram em países de renda média-baixa, ou renda baixa. Quase metade foi aplicada em países ricos, de alta renda, que têm apenas 15% da população mundial. Quando você tem 45% das vacinas sendo aplicadas em países de alta renda, para 15% da população mundial, você tem uma desigualdade, uma inequidade de acesso que é enorme. A OMS preconiza que, nesta fase aguda, haja uma priorização para vacinar todas as pessoas que têm maior risco de morrer, que são as acima de 65 anos, pessoas que têm alguma doença associada, e todos os profissionais de saúde. Tem países de maior renda que estão começando a vacinar população acima de 16 anos, enquanto temos 13 países no mundo que não receberam nenhuma vacina. As vacinas, é importante ressaltar, até o momento as evidências apontam que elas previnem doença grave. Mas elas não necessariamente previnem a transmissão. Elas precisam ser utilizadas para evitar que aquelas pessoas que têm maior risco de morrer, morram. Não é o caso de um jovem de 18 anos. A solicitação que a OMS está fazendo, veementemente, é para que países que contrataram doses acima do que necessitam para sua população compartilhem essas doses o mais rápido possível, para que possa haver uma diminuição nessa inequidade de acesso às vacinas.

Mariangela Simão
Mariangela Simão (Foto: Arquivo Pessoal)

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Qual a situação atual das variantes?

As pessoas, em geral, sabem que os vírus criam mutações. Eles se reproduzem de forma imperfeita, o que pode levar a mudanças no comportamento. É bastante conhecida, por exemplo, a resistência aos medicamentos contra o HIV. Quando se tem um conjunto de mutações que aparecem de forma consistente, elas constituem uma variante. Elas são classificadas como de interesse, quando têm que ser monitoradas, e as variantes de preocupação em saúde pública, que são as variantes que já demonstraram que têm uma maior capacidade de transmissão. É o caso da variante inicialmente identificada no Brasil, da inicialmente identificada no Reino Unido, e da que está circulando agora na Índia. Essa é uma razão adicional para que a gente atinja, o mais rápido possível, o maior número de pessoas, em todos os países, vacinadas. Há possibilidades de que as variantes possam influenciar nos resultados de eficácia das vacinas. Algumas semanas atrás, a OMS fez uma reunião global com mais de 2 mil experts, para discussão do monitoramento das mutações e variantes no mundo. É uma rede, e o Brasil integra essa rede, extremamente importante no momento em que você observa que isso é feito através da análise do genoma do vírus, de como ele é constituído. As redes para detecção dos vírus diferentes têm um centro nos EUA, que hoje congrega mais de um milhão de amostras. Quanto mais cedo elas circulam num banco público, mais fácil é para os pesquisadores fazer a utilização nas suas pesquisas e ter uma aplicação epidemiológica, uma ideia do que essa variante na prática implica em termos de políticas de saúde.

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Tem alguma situação específica, em relação às variantes, que preocupe mais?

A que foi inicialmente identificada no Brasil (por exemplo). São várias as variantes de preocupação. No momento, essa variante que está circulando na Índia é de bastante preocupação, porque ela tem uma dupla mutação, que tem aparecido com frequência, e pode estar associada a um aumento na transmissibilidade. É algo para ser observado pelos centros de pesquisa e de vigilância epidemiológica dos países.

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Temos vacinas mais e outras menos eficientes. O que vai ditar quem permanecerá no mercado no futuro? Há espaço para todas?

Num futuro a médio e longo prazo, com certeza. Primeiro, porque ainda não convivemos com esse vírus há tanto tempo. As vacinas começaram a ser utilizadas, as primeiras doses, em dezembro. É uma vida muito curta, seis meses de utilização. Ainda não se conhece com certeza o perfil da imunidade. Se você tiver contato (com o vírus após a vacina), como vai estar sua imunidade. Normalmente as vacinas são feitas, causam uma reação imunológica, e com o passar do tempo você pode necessitar de uma vacina adicional. Todo mundo conhece (como funciona) a da influenza (que repete todo ano), e a do sarampo, que você faz duas vezes na infância e tem imunidade permanente. Ou febre amarela, que você faz uma vez e nunca mais precisa tomar de novo. Esse perfil de comportamento das vacinas, e os estudos que temos em andamento sobre a efetividade dessas vacinas, se elas serão capazes de prevenir a transmissão da doença, ainda estão em andamento. Precisamos (de todas) no momento, não só por conta do quantitativo, por não termos ainda vacinas suficientes em circulação para proteger todos os vulneráveis, mas também pelo fato de não conhecermos o que vai acontecer do ponto de vista da reação imunológica no corpo das pessoas. Se terão anticorpos suficientes, caso tenham uma infecção daqui a dois ou três anos, ou se vão precisar de um reforço. Até o momento, das vacinas aprovadas, apenas uma é de uma dose só. As demais todas são de duas doses, com variações de intervalo (entre as aplicações). Então, por enquanto precisamos de todas as vacinas que já foram aprovadas, mais as que ainda vão ser.

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Se ela for reaplicada no futuro, já é possível prever se será universal ou voltada a grupos específicos?

Ainda não. É provável, porque outros coronavírus ressurgem periodicamente, então pode ser que precise fazer reforços anuais. Mas não sabemos ainda. Não se conhece o suficiente ainda.

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A senhora já se manifestou contrária à compra de vacinas pela iniciativa privada. Algum outro país do mundo levantou essa hipótese? Vê ela funcionando de alguma maneira?

No momento em que temos um mercado com tantos problemas de abastecimento, é prudente e extremamente recomendável que as aquisições e a distribuição de vacinas se deem por meio dos sistemas públicos. Não criar barreiras adicionais para que pessoas não tenham a vacina por não poderem pagar por ela. A sede da OMS é localizada na Suíça, que todos sabem que é um país muito rico. Na Suíça não tem sistema único de saúde, todo mundo tem que ter seguro privado. Mas a vacina está sendo aplicada apenas pelo setor público, e sem nenhum custo para a pessoa que está tomando. Até países que têm apenas sistemas privados de saúde tomaram como medida de interesse de saúde pública a disponibilização das vacinas pelo setor público. Isso é extremamente importante, em especial num país como o Brasil, com desigualdades tão grandes, e num momento em que há escassez do produto. A forma mais justa é que a vacina possa estar disponível para as pessoas que precisam por meio do sistema público.

A senhora acompanha a situação da vacinação no Brasil, e a falta de doses. Na sua avaliação, o Brasil errou na negociação de vacinas?

O Brasil tem uma grande vantagem em relação aos demais países, porque tem produção local, pela Fiocruz e o Butantan. Então, a média mundial de cobertura é de 1,5% da população nos países em desenvolvimento. O Brasil está com 11% ou 12% com duas doses. O Brasil optou pelo investimento na produção local, o que é excelente. Em relação aos contratos com os laboratórios, não posso opinar. Na verdade, seis meses atrás não sabíamos qual vacina seria realmente eficaz. O primeiro registro de vacinas aconteceu nos EUA, começo de dezembro, e foi a vacina da Pfizer. O Reino Unido também registrou em dezembro a vacina da AstraZeneca. Os países ricos tinham condições de fazer contratos bilaterais sob risco. Não sabiam se a vacina iria funcionar, mas podiam apostar em várias candidatas a vacinas. Mas só viemos a saber que a vacina x, y, z funcionava no final de novembro. Então, é difícil opinar sobre decisões que foram tomadas em maio, junho do ano passado, quando não sabia o que iria funcionar e você estaria comprando uma vacina que talvez não fosse eficaz no final.

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A prescrição de cloroquina e ivermectina está em discussão no Brasil, na CPI da Covid. A senhora acompanha essa discussão? Qual seu posicionamento sobre esses medicamentos?

Não é um posicionamento pessoal. A OMS tem recomendações sobre a hidroxicloroquina e cloroquina, que já são do ano passado. A Organização tem um grupo de experts que trabalha na análise de todos os estudos que foram feitos. Tem uns 1,7 mil estudos registrados na OMS, com várias drogas. Quando algum deles termina o que a gente chama de fase 3, com alguns resultados promissores, eles são avaliados por esse grupo de experts. A conclusão foi de que hidroxicloroquina e cloroquina na verdade eram contraindicadas por não apresentarem nenhuma eficácia contra a Covid, e apresentarem riscos para os pacientes. A ivermectina é mais recente, saiu há uns dois meses atrás um estudo também com a recomendação da não utilização da ivermectina, com exceção de estudos clínicos. Até o momento, os estudos que foram feitos, e estamos falando de estudos robustos, não confirmaram que ela tenha eficácia para pacientes hospitalizados, e também em relação à prevenção. Essa é a posição do grupo de vias terapêuticas da OMS.

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A Organização anunciou a criação de um conselho para discutir as questões econômicas para promoção de saúde. Como ele vai funcionar?

O conselho é interessante porque é formado por mulheres economistas. A moderadora é a Mariana Mazzucato, uma economista muito boa, italiana, que trabalha no Reino Unido. A ideia é que esse conselho forneça recomendações à OMS, junto com outras agências das Nações Unidas, sobre o impacto social e econômico da pandemia, e quais as medidas que podem ser utilizadas para aliviar esse impacto e proteção dos mais vulneráveis.

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Hoje, a senhora diria que a pandemia vai até quando?

Eu tenho um colega, o Mark Ryan (chefe do programa de emergências da OMS), que diz que, por ele acabaria amanhã. Mas não vai acabar. É difícil dizer (quando terminará). Mas temos que ter paciência, porque as vacinas ajudam, mas não vão solucionar tudo rapidamente.

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