A doutora em microbiologia Natalia Pasternak, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), falou com exclusividade à coluna sobre a ivermectina, antiparasitário que é a bola da vez na lista dos remédios que aparecem como promessa de prevenção e cura contra o novo coronavírus – sem comprovação científica.
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Desde o fim de semana, o remédio, que é usado para tratar infestações de pulgas e piolhos, virou assunto em Santa Catarina por dois motivos: de um lado, a saída de médicos do comitê de enfrentamento à Covid-19 em Balneário Camboriú após a medicação ser inserida nos protocolos de tratamento inicial dos pacientes com coronavírus. De outro, a decisão da prefeitura de Itajaí de distribuir doses para a população, supondo propriedades preventivas da medicação.
Natalia Pasternak falou sobre as pesquisas em torno do medicamento, os protocolos defendidos por grupos médicos e o que a ciência prepara em medicamentos e vacinas para enfrentar a pandemia. A pesquisadora é fundadora do Instituto Questão de Ciência, organização que se dedica à promoção de políticas públicas baseadas em evidências científicas.
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Entrevista
Natália Pasternak, microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Faz sentido usar a ivermectina contra o coronavírus?
Não faz, não temos evidências suficientes de que a ivermectina seja bom medicamento. Ela foi testada nos estágios bem iniciais, bem preliminares de um teste clínico, que foi na bancada do laboratório. Em tubo de ensaio mesmo, o estágio que a gente chama de in vitro. E nessa parte, in vitro, a gente testa o medicamento em cultura de células no laboratório. Nesses testes, tem uma infinidade de princípios ativos que funcionam como antivirais. Mas depois, quando você vai testar em animais e em humanos, não funciona. Isso é o caminho normal de um medicamento, é assim que a ciência funciona. Trabalhar com desenvolvimento de fármacos é superfrustrante, a maior parte dá errado. São pouquíssimos produtos que dão certo in vitro, e que realmente chegam depois no mercado de medicamentos. A ivermectina está nesse comecinho, ela não foi testada ainda nem em animais nem em humanos para Covid-19.
A ivermectina não foi testada ainda nem em animais nem em humanos para Covid-19.
É um medicamento que foi testado e aprovado para tratamento de piolho, pulga, algumas verminoses, é um antiparasitário. Pode ser que funcione para Covid-19? Até pode ser, mas a gente não tem essa informação ainda. E essa informação está bem longe de ser obtida, precisa fazer todo esse caminho.
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Qual o risco de se adotar esse tipo de protocolo com as pesquisas tão iniciais?
O risco individual é muito baixo, no sentido de que não é um medicamento que, se for usado na dose de bula, vai fazer mal para alguém. Quem tomou, não precisa se preocupar. A não ser pessoas que tenham alergia, alguma reação. Mas, em geral, é um remédio muito seguro quando é usado nas doses de bula para tratamento de verminoses, de piolho. Agora, socialmente, gera um problema porque é um remédio que, ainda mais sendo distribuído pela rede de saúde pública como profilático, pode gerar uma falsa sensação de segurança na população, e a achar – eu estou tomando um remédio profilático, eu não vai deixar que eu fique doente, então não preciso mais seguir as normas de segurança. Não preciso fazer distanciamento físico, não preciso usar a máscara, posso visitar meus pais idosos. Então, ele pode gerar uma mudança de comportamento que é muito arriscada. Além do custo que isso tem para os cofres públicos. A gente está falando em investir milhões e milhões de reais para a compra de um medicamento, para que ele fique disponível na rede pública, quando não tem nenhuma evidência científica para embasar.
A gente está falando em investir milhões e milhões de reais para a compra de um medicamento, para que ele fique disponível na rede pública, quando não tem nenhuma evidência científica para embasar.
E existe evidência científica para a compra de respiradores, anestésicos para poder intubar as pessoas, de analgésicos, equipamentos de proteção, de insumos para testes diagnósticos. Então, tem diversos custos que precisam ser cobertos, e esse dinheiro está sendo mal direcionado, para usar em algo que é extremamente preliminar, que tem grandes chances de não funcionar, e que ainda não foi testado.
Existe comprovação de cidade ou país que tenha usado ivermectina e tenha funcionado?
Não tem, nem de municípios e nem de países. Isso são evidências que a gente chama de anedóticas em ciência. São observações, casos em que as pessoas acham que estão vendo uma relação de causa e efeito. Mas, para estabelecer uma relação de causa e efeito, para o uso de um medicamento, você precisa de testes clínicos controlados. Quando você fala – tem uma cidade que usou, nessa cidade tem menos mortes do que em outra – a única diferença entre essas cidades não é a ivermectina. Tem um monte de outros fatores de confusão que podem estar interferindo em uma cidade ter desempenho melhor do que outra.
As pessoas podem ser mais engajadas na quarentena, a cidade pode ter uma rede hospitalar melhor, o pronto atendimento pode ser melhor, a comunicação com a população, para disseminar as regras de segurança pode ser melhor, a cidade pode ter menos habitantes, ser menos densa. Então, tem diversos fatores de confusão que podem influenciar como uma cidade, ou mesmo um país, vai responder à pandemia. A gente não tem como atribuir uma melhora de desempenho de uma cidade a um único fator. Ainda mais um fator que não tem nenhuma comprovação de eficácia em testes clínicos. Essa relação de causa e efeito, não tem como a gente medir assim.
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A dose dos testes era mais alta do que a medicação comum?
In vitro, na cultura de células, para conseguir um bom resultado antiviral, para conseguir eliminar o vírus, como eles falam que eliminou 94% em 48 horas, eles tiveram que usar uma quantidade muito maior do que a que a gente consegue atingir no sangue com essa dose de bula, que a gente usa para matar vermes e piolhos. Se fossemos fazer a extrapolação, para o quanto a gente precisaria tomar, seria uma dose tóxica.
O quanto a gente precisaria tomar (de ivermectina para acabar com o vírus) seria uma dose tóxica.
Por isso não se tem tanta confiança. Em ciência tudo pode ser testado, mas não é um medicamento que tem muita plausibilidade.
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Como vê o coquetel que está sendo defendido por alguns grupos médicos, que inclui ivermectina, cloroquina, algumas vitaminas?
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É a mesma coisa. O coquetel é feito de diversos medicamentos que não têm comprovação. Vitaminas não devem ser usadas por essas que estão saudáveis, apenas por pessoas que têm carência específica de vitaminas, e não tem nenhuma indicação do uso de vitaminas para Covid-19. A hidroxicloroquina está num estágio mais avançado do que a ivermectina. Se a ivermectina a gente ainda não testou, a hidroxicloroquina, pelo contrário, já foi testada e já foi descartada. Ensaios clínicos bem controlados já mostraram que ela não tem efeito para Covid-19. É pior do que a ivermectina, porque é um remédio que a gente já sabe que não funciona. Tem o zinco, que nem foi testado, nem plausibilidade biológica tem, e o pessoal tirou do chapéu daquele médico americano, doutor (Vladimir) Zelenki, que falou que tinha que juntar hidroxicloroquina com azitromicina e zinco.
O coquetel é feito de diversos medicamentos que não têm comprovação.
A azitromicina é a mesma coisa, que já vi em alguns desses kits covids. Eles não são todos iguais. A azitromicina começou a ser considerada por causa daquele primeiro estudo francês, da hidroxicloroquina, do grupo de Marselha. E ficou consagrada, que a hidroxicloroquina só funciona com azitromicina. É assim que está no protocolo do nosso Ministério da Saúde. Também é algo que não tem comprovação nenhuma, e vários estudos já comprovaram que nem tem eficácia. O kit todo é baseado numa medicina fantasiosa, numa medicina baseada impressões, e não baseada em ciência.
O kit todo é baseado numa medicina fantasiosa, numa medicina baseada impressões, e não baseada em ciência.
A impressão do médico é algo extremamente enganoso. O médico olha para o paciente e diz – o paciente chegou com quadro de covid. Eu dei ivermectina e ele melhorou. Portanto, a ivermectina curou meu paciente. Mas isso não é verdade, não é assim que a gente testa medicamento. O paciente pode ter se curado espontaneamente, apesar da ivermectina. Como acontece com 90% dos pacientes de covid. Numa doença que tem 90% de cura espontânea, as pessoas saem dessa sozinhas, sem nenhum tipo de medicamento, você não pode usar um kit desses e falar que é o kit que está dando resultado. Para medir isso precisa de um teste clínico controlado.
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Preocupa haja médicos muito empenhados na defesa desse coquetel e da ivermectina?
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Preocupa muito, isso mostra dois fatores muito preocupantes. Grande parte dos médicos no Brasil não entende como funciona o teste de um medicamento. E não entende como se estabelece causa e efeito para um medicamento no tratamento de uma doença. Isso quer dizer que a gente falhou nas nossas escolas de medicina, não estamos treinando bem os nossos profissionais. O médico não tem obrigação de ser cientista, mas tem obrigação de entender minimamente como funciona a ciência que deve embasar as condutas médicas. Fármacos e medicamentos são coisas que eles têm que entender como funcionam.
Grande parte dos médicos no Brasil não entende como funciona o teste de um medicamento.
Então, é preocupante primeiro por isso, porque mostra que grande parcela da comunidade médica não compreende bem os processos da ciência. E é preocupante porque a população é treinada para confiar no que o médico diz. Existe uma autoridade muito forte inserida na figura do médico. Se o médico fala – tome ivermectina porque você vai ficar curado, ou não vai pegar a doença, a maior parte das pessoas acredita. Isso pode, como eu falei, gerar mudanças de comportamento muito perigosas.
O que é mais promissor, hoje, em relação a medicamentos para covid?
Medicamento para vírus respiratório não é algo que a gente é muito feliz em fazer. Não temos hoje para nenhuma virose respiratória um medicamento específico que cure. O Tamiflu, para gripe, é um medicamento que ajuda, não que cura. Até hoje não conseguimos desenvolver bons antivirais. O que temos são medicamentos que ajudam. Dentro dessa linha, alguns estão se mostrando promissores para Covid-19. Tem o Remdesivir, que é um antiviral que deu uma ajuda para diminuir o tempo de recuperação, mas é um remédio muito caro e de uso injetável, tem que ser usado no ambiente hospitalar não dá para usar em casa. Tem a dexametasona, que é um corticoide, assim como outros que também têm sido usados na fase mais grave da doença, para tentar conter a cascata inflamatória no pulmão. Foi testado e pareceu ir muito bem nos testes, com boa redução de mortalidade.
Tem também o tocilizumabe, que é um anticorpo monoclonal de interleucina 6, e também é uma (substância) envolvida na cascata. Então, bloqueando a interleucina 6 você pode conseguir uma boa resposta nessa fase grave de inflamação. Esse medicamento está sendo testado ainda mas está indo bem, pode ser um bom aliado. São todos medicamentos que ajudam. Qualquer medicamento que ajudar a reduzir mortalidade, tempo de internação, vai ser muito bem-vindo.
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Qualquer medicamento que ajudar a reduzir mortalidade, tempo de internação, vai ser muito bem-vindo.
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A vacina está mais avançada?
Vacinas estão bem avançadas, e para doenças virais em geral a gente tem uma tradição de controlar muito mais com vacina do que com medicamento. Tem várias sendo testadas em humanos. Duas que estão bem avançadas, inclusive serão testadas no Brasil, que ficaram popularmente conhecidas como a vacina da China e a vacina de Oxford. A da China é uma parceria do Butantan, em São Paulo, e da Fiocruz, no Rio, com a Sinovac, que é a empresa chinesa que está fazendo essa vacina. É de vírus inativado, que a gente chama de vacina à moda antiga, porque é o mesmo jeito que a gente fazia vacina há 60 anos, que é pegar o vírus, cultivar, e depois inativar. Ela está avançada, entrando na fase 3. Vamos ver como ela fica no teste de eficácia, que é o que a gente testa na fase 3. É quando a gente vê se a vacina funciona ou não. E a de Oxford é a mesma coisa. É uma vacina mais moderna, de vetor, usa um adenovírus de chimpanzé, então é uma técnica bem mais avançada, mais versátil, mas também muito nova. A gente não tem nenhuma vacina como ela no mercado ainda. Também foi bem nos testes em animais, e nos primeiros testes em humanos. Vamos ver como se sai agora, vai ser testada no Brasil em parceria com a Unifesp.
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A expectativa é que tenhamos uma vacina em quanto tempo?
É difícil dizer, depende muito de como vai correr a fase 3. Em princípios, as duas iniciativas prometeram uma resposta para o final do ano. Mas isso depende muito de como ocorrer a fase 3. Às vezes você começa com 10 mil voluntários, e no meio você percebe que tem que recrutar mais 10 mil porque não está conseguindo uma boa estatística nas respostas. A fase 3, a gente vai adaptando conforme os resultados vão aparecendo. Pode ser que ela demore mais do que seis meses.
Pode ser que a vacina demore mais do que seis meses.
De qualquer jeito, estamos fazendo isso em tempo recorde, porque normalmente demora uns oito anos para colocar uma vacina no mercado. Não é bom apressar. A gente precisa que a vacina seja muito segura, e a gente tenha boas provas de eficácia. Sei que está todo mundo muito ansioso para ter a vacina, mas soltar uma vacina no mercado que não funciona, ou que tem efeitos colaterais que a gente não conseguiu prever nas fases de testes, pode abalar muito a credibilidade da ciência e da medicina.
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