Passado mais de um ano desde que o coronavírus desembarcou no Brasil, a vacinação contra a Covid-19 é o anseio dos brasileiros para frear a disseminação do vírus e, consequentemente, a retomada da normalidade das rotinas. Iniciada em janeiro, a campanha de imunização põe à prova o exemplar e reconhecido Programa Nacional de Imunizações (PNI).

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A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o PNI por oito anos, entre 2011 e 2019, credita a demora no avanço da vacinação à falta de vacinas e critica o governo federal por ter delegado a estados e municípios a responsabilidade de coordenar as ações, sobretudo por não ter uma comunicação uniforme no país.

– O que fez Brasil ter reconhecimento internacional foi justamente ser um país de dimensão continental, com diversidade muito grande, conseguir levar a vacinação para essas diferentes realidades da mesma forma.

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Domingues reforça a necessidade do convencimento da população jovem sobre o distanciamento social e uso da máscara: “É isso o que vai fazer com que, neste momento em que há escassez de vacinas, eles adoeçam menos”. Ela também cobra do governo federal ações para combater a desinformação em torno das vacinas.

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Em entrevista à NSC, Carla Domingues fala sobre a compra de doses por estados, municípios e o setor privado, avalia a decisão da Anvisa sobre a Sputnik V e alerta para a necessidade do Brasil investir em pesquisa e fabricação de insumos de saúde. 

(* Com Everton Siemann)

Entrevista: Carla Domingues

O Brasil já foi exemplo mundial em vacinação, pela capilaridade do sistema de saúde. O que impediu que esse sistema fosse usado adequadamente desta vez?

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Não ter vacinas. Se temos uma população inicial definida em 80 milhões de pessoas (para vacinar), a necessidade é de 160 milhões de doses, porque estamos falando de duas doses para cada pessoa. E não há esse quantitativo de vacinas. Toda essa capilaridade do SUS, com 38 mil salas de vacina, mais de 200 mil profissionais de saúde envolvidos, não está sendo usada adequadamente por falta de vacinas.

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Em alguma outra oportunidade já se verificou o plano nacional de imunização ser descentralizado como vemos agora?

O que fez Brasil ter reconhecimento internacional foi justamente ser um país de dimensão continental, com diversidades muito grande, como na região Norte, em que se tem populações ribeirinhas, quilombolas, população indígena, e outras cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, com elevada densidade populacional, onde se vacinam de cinco a dez milhões de pessoas, conseguir levar a vacinação para essas diferentes realidades da mesma forma. Isso ocorre porque sempre teve uma política nacional. O Ministério da Saúde traçava, e estados e municípios seguiam, garantindo a equidade do SUS, (que é) dar a mesma vacina, da mesma forma, para a população, não havendo essa diferenciação que estamos vendo agora. 

Na minha avaliação, é a primeira vez que isso acontece desde que o Programa Nacional de Imunizações foi criado. Se olharmos a história anterior à criação do PNI, era exatamente isso o que acontecia. Aqueles estados que tinham vacinas, recursos financeiros, tinham sua política de vacinação. O que não impactou na diminuição do impacto epidemiológico das doenças. Foi a partir da criação do PNI, da organização desses processos de vacinação, da distribuição universal de vacinas, o que fez com que a gente tivesse a diminuição da incidência (das doenças), da mortalidade.

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Isso é algo pontual, ou podemos estar perdendo essa característica fundamental para o sucesso da vacinação?

Não acho que vai ter impacto, pelo menos neste momento, para as demais vacinas, que estão disponíveis no SUS para todo mundo. Isso é uma peculiaridade dessa campanha, em que se abriu mão da coordenação nacional justamente pela escassez de vacinas. (O governo) teria que ter uma posição mais enérgica, dizendo quem poderia ser vacinado e quem não, e aí delegou para estados e municípios e se eximiu da responsabilidade.

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Em que ponto esse modelo prejudica a imunização dos brasileiros?

Prejudica primeiro porque não tem comunicação uniforme no país. A população fica muito confusa, não consegue entender por que em uma região já estão vacinando a população com 60 anos, a população com comorbidades, forças de segurança, professores, e outra região ainda está vacinando a população de 64 anos. Isso faz, inclusive, com que pessoas saiam de seus municípios para serem vacinadas em outros, na busca desesperada por vacinas. Isso desorganiza todo o processo de vacinação e dificulta a efetividade. Se estivéssemos vacinando, por exemplo, todo mundo com 60 anos, e na mesma velocidade, conseguiríamos avaliar rapidamente o impacto da vacinação nessa população. Mas se cada município vacina uma população diferente, é difícil avaliar os impactos dessa vacinação porque grupos vão ficar sem serem vacinados nesse primeiro momento.

Faz sentido passar categorias como segurança pública, como ocorre em SC, na frente de outras? Ou os professores, como ocorreu em alguns estados?

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Acho que não. Temos que lembrar qual o objetivo da vacinação neste primeiro momento, que é diminuir gravidade, internação e óbito. Quem mais tem esse tipo de problema são os idosos e as pessoas com comorbidades. Se a gente for olhar para as categorias, não tenho dúvidas de que professores e forças de segurança são prioritários dentro das demais categorias. Mas não neste momento, em que ainda não conseguimos finalizar os idosos, e não conseguimos finalizar o grupo com comorbidades. Quando finalizarmos, acho sim que professores e forças de segurança deveriam ser os primeiros a estarem na fila.

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A prevalência das novas variantes em pessoas mais jovens não justificaria a mudança nos parâmetros?

Não justifica porque não tem vacina. Neste momento, mesmo tendo esse grupo mais acometido, isso ocorre porque ele está se expondo mais. Esse é o problema. Temos que convencer a população jovem de que tem que manter o distanciamento social, tem que usar a máscara, porque é isso o que vai fazer com que, neste momento em que há escassez de vacinas, eles adoeçam menos. O Brasil não está acreditando no risco da doença, não está acreditando que nós temos uma variante que infecta duas a três vezes mais do que as outras. 

Esse grupo, ao se aglomerar, faz o que nós chamamos de supercontaminadores. Ao invés de uma pessoa contaminada contaminar três, ela contamina outras dez em ambiente fechado. Então, o que precisamos é convencer o jovem de que ele tem que respeitar as medidas não farmacológicas, e não vaciná-los neste momento em que há escassez de vacinas.

5 –As ‘cláusulas leoninas’, que o Ministério da Saúde usou como justificativa para não comprar inicialmente a vacina da Pfizer, são normais? O Brasil já fez negociações semelhantes?

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Temos que entender que estamos diante de uma emergência, em que as vacinas foram desenvolvidas muito rápido. Estamos falando de risco compartilhado entre laboratórios e governos. Se olharmos o contrato da AstraZeneca com Biomanguinhos (Fiocruz), a cláusula está lá. Se olharmos o contrato da Sinovac com o Butantan, está lá. Possivelmente, também estará no contrato das demais empresas. Só que a diferença é que Biomanguinhos e o Butantan assumiram esse risco. Quando a Pfizer foi fazer um contrato diretamente com o governo, o governo não quis correr esse risco. 

Numa necessidade de emergência, temos que correr algum risco. Mais importante que isso, temos que entender que essas vacinas são muito seguras. Ainda não vimos nenhum motivo que justifique essa enorme preocupação do governo. É uma cláusula cautelar, para uma possível avaliação de efeitos adversos, que serão raros. Estamos vendo agora com a AstraZeneca. A cada quatro pessoas que tomam a vacina, em um milhão, há casos de trombose. Se comparar à doença (Covid-19), são 1,7 mil casos de trombose para cada um milhão. É infinitamente menor o risco da vacina. Por isso falamos que o benefício da vacina se sobrepõe ao risco. Por isso não tem sentido o governo federal ter cautela excessiva, sendo que todos os países assumiram esse risco.

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Muitas pessoas têm deixado de tomar a vacina Oxford/AstraZeneca, por conta dos efeitos colaterais. O governo está sendo eficiente em se comunicar com essas pessoas?

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Essa é a grande questão dessa campanha, há uma ausência completa de comunicação para mobilizar a população. Estamos vendo o abandono da segunda dose. A população precisa entender que só vai estar protegida com duas doses e que vacina, como qualquer medicamento, tem risco de efeito adverso. Se você tem dengue, e tomar Aspirina, pode ter uma complicação. O que a gente faz? Comunica que em caso de dengue não pode tomar esse remédio. Isso não é impedimento para tomar vacina. Entre os anticoncepcionais, tem 500 a 1,2 mil casos de trombose para cada um milhão. Por isso vamos tirar os anticoncepcionais (do mercado)? Não vamos. Tem pessoas que têm casos de trombose com uso de corticóide, que é um dos principais medicamentos para Covid-19. Vamos tirar do mercado? Não, vamos dizer que ele tem uma contraindicação.

O quanto as fake news e os movimentos anti-vacina têm influenciado no número de pessoas que estão deixando de tomar as vacinas contra a Covid-19?

Muito, se você não tem uma comunicação adequada e deixa espaço para as fake news circularem nas redes sociais, sem contraponto com a informação correta, a desinformação prevalece contra a verdade, contra a ciência. Como se contrapõe? Massificando a informação correta.

A senhora é a favor da compra de vacinas pelos estados e municípios?

Sou, porque é dessa forma que poderemos garantir uma maior oferta de vacinas, uma vez que o governo federal não conseguiu fazer a aquisição. Mas desde que essas vacinas respeitem o princípio do SUS, sejam gratuitas, que tenha (ordem de) prioridade dentro da organização das vacinas, e não que sejam liberadas para cada estado e município fazer uma política de vacinação. Se for respeitada a política nacional, será bem-vindo.

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E pelo setor privado?

O setor privado sempre atuou de forma complementar ao SUS. Vou dar o exemplo da vacina da Influenza, o Brasil compra 80 milhões de doses para os grupos de risco. O setor privado compra vacinas para vacinar seus funcionários, e tem a vacinação vendida na rede privada. Nosso grande problema hoje é que não há vacina no setor público. Essa é a discussão. Não que o setor privado seja antagônico ao SUS, ele sempre foi complementar. No momento em que não se tem vacinas, é difícil discutir esse privilégio de alguns setores terem vacina em relação a outros. Outro ponto que tem que se deixar claro é que os laboratórios produtores de vacinas não venderão para o setor privado. Então, acho que é uma discussão extemporânea. Pode ser que no segundo semestre, ou em 2022, quando estiver regularizada a situação no setor público, se consiga comprar a vacina no setor privado. Já existe essa permissão. Acho que estamos perdendo um tempo enorme nessa discussão, porque não vão conseguir comprar a vacina.

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A Anvisa acertou em impedir a importação da Sputnik?

Não tenho uma avaliação concreta sobre isso, precisamos entender os dados. Escutando a Anvisa falar, parece que ela está correta, porque tem dados faltando e precisamos discutir a segurança. Mas a gente precisa entender por que ela foi aprovada em mais de 60 países e esses pontos que a Anvisa está colocando, de falta de qualidade no processo produtivo, essa discussão da replicação do adenovírus, por que só o Brasil identificou. Ao mesmo tempo, se você olhar no site da OMS, ela ainda não é uma vacina aprovada. Então, possivelmente a OMS já identificou também alguma dessas questões que não têm respostas. A Anvisa pode estar adequada, sempre trabalhou de forma técnica. Temos que entender com mais detalhes essas exigências que estão sendo feitas, e por que outros países não fizeram. Tecnicamente, faz sentido o que a Anvisa está colocando.

Agora vai chegar a vacina da Pfizer, que é considerada mais eficaz, mas será distribuída só às capitais. Qual o risco de termos pessoas escolhendo cardápio de vacinas?

Vai depender de como o serviço de saúde vai organizar. Infelizmente, já estamos vendo isso com a AstraZeneca e a Coronavac. Algumas pessoas, quando chega sua vez, não vão ao serviço de saúde porque estão esperando uma ou outra. Não sei como vai ser o comportamento da população e como o Ministério da Saúde e as secretarias vão garantir essa vacina, se vai ter definição de um público alvo ou aberta para todo mundo.

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A senhora concorda com a posição do governo em se colocar contrário à quebra de patentes das vacinas?

Quando tem a queda de patente há sanções para outros produtos, porque não é uma coisa simples economicamente. Isso depois tem implicação na produção de outros produtos, no fornecimento, acaba interferindo inclusive em outras patentes. Não sou especialista nessa área para responder sobre a consequência a médio e longo prazo, mas o que se vê é que não é um processo simples e, se tiver que ser feito, terá que ser globalmente. Um país sozinho vai ter sanções por (tomar) essa decisão (de forma) unilateral.

A vacina vai ser um tema crucial na CPI da Covid. Tem defesa para o governo?

Vai ter que se discutir (vacinas). Tem falhas, e elas terão que ser apuradas, (como) demora na aquisição das vacinas, definição política de escolher uma vacina em detrimento de outra. Mas como isso vai caminhar, teremos que acompanhar.

A pandemia fez com que as pesquisas e o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19 fossem acelerados. Isso revela a importância do investimento na ciência. Nesse contexto, a senhora acredita que o Brasil vai “acordar” para isso? Teremos mais investimento em pesquisa, sobretudo na área da saúde?

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Infelizmente, o que vimos agora no orçamento foi diminuição no orçamento de pesquisa, inclusive na Fiocruz. É o que a gente esperava, que essa pandemia acordasse os países de que é preciso investir em pesquisa e desenvolvimento. Os EUA investiram US$ 8 bilhões na produção de vacinas, por isso eles têm tantas neste momento. Espero que esse seja um legado dessa pandemia, (consciência de) que não podemos ficar reféns do mercado internacional, e a única forma de sermos proativos em próximas pandemias que virão é ter capacidade rápida de produção de medicamentos e insumos. Dependemos de respiradores, de luvas, de máscaras. Dependemos do mercado internacional para tudo. Que isso sirva de lição, que precisamos ter um parque industrial da saúde fortalecido.

Pela sua experiência, teremos os brasileiros vacinados até o fim do ano, como o governo anuncia?

O próprio governo já falou que vai terminar em setembro os (primeiros) 80 milhões. Não acredito que os outros 80 milhões serão vacinados em três meses. Vai depender da velocidade em que entrarão as novas vacinas. No ritmo em que estamos, não vai ser possível. O que temos visto, até agora, é atraso. Não vimos ninguém conseguindo acelerar cronograma de entrega.

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