Ao classificar como “normal” e “tranquilo” o processo eleitoral na Venezuela, que tem um fétido odor de fraude, Lula coloca em xeque o discurso que o elegeu em 2022, de defesa intransigente das instituições e da democracia. O presidente está tentando se equilibrar entre a posição do Itamaraty, mais cautelosa, e o abraço do PT ao ditador Nicolas Maduro, representante de uma autocracia militar muito semelhante àquela que Bolsonaro pretendeu implantar no Brasil. Apenas com sinais trocados.

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Há uma leniência de parte da esquerda brasileira com as ditaduras sul-americanas. Uma “posição fetichista”, como definiu em entrevista à BBC o cientista político Claudio Couto, professor da FGV. Poderíamos acrescentar ultrapassada a esse rol de adjetivos. Nesse círculo, a derrocada venezuelana é creditada exclusivamente aos embargos impostos pelos Estados Unidos – que, de fato, ajudaram o país vizinho a chegar à situação de hoje. Mas é uma análise rasa, centrada no binário anti-imperialismo, que omite o fato de que a Venezuela é administrada por um autocrata autoritário.

Outros presidentes de esquerda da América Latina, como Gabriel Boric, do Chile, e Gabriel Petro, da Colômbia, foram contundentes nos questionamentos à eleição venezuelana. Representante do maior e mais influente país da região, Lula alivou e “passou pano” para Maduro.

O presidente brasileiro sugeriu deixar o caso com o Judiciário venezuelano – uma fantasia, uma vez que a Suprema Corte da Venezuela é aparelhada por Maduro, que agarrou a bola jogada e rebateu: disse que vai entregar ao Judiciário as atas eleitorais e tudo o que for solicitado. Mas quem irá checar a análise dos juízes chavistas?

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“O problema da democracia na Venezuela não é só de voto, mas de uma fraude permanente contra todos os demais elementos necessários a uma democracia” – escreveu o jornalista João Paulo Charleux.

Organismos internacionais, como a ONU, vêm denunciando repetidamente as afrontas de Maduro à democracia ao longo dos anos, como a perseguição de seus oponentes. Desde as eleições, pelo menos 11 pessoas foram mortas e mais de 700 presas por protestar contra o resultado e por alegar fraude nas urnas.

A Venezuela está em 165º lugar no ranking de liberdade de imprensa produzido anualmente pela organização Repórteres Sem Fronteiras, muito perto de outras ditaduras como a da Arábia Saudita. A imprensa livre, vale ressaltar, é um dos pilares indissociáveis da democracia.

A derrocada da Venezuela gerou miséria, fome, e provocou a diáspora de quase oito milhões de cidadãos. Muitos deles vivem hoje no Brasil. O que ganham Lula e o PT com a defesa de Maduro, exceto inflar os argumentos da oposição? Vale lembrar que o venezuelano chegou a questionar o sistema eleitoral brasileiro na semana passada.

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Lula foi alvo de uma tentativa de golpe nos primeiros dias de mandato, e se elegeu em uma frente democrática que uniu adversários políticos contumazes, em defesa do Estado Democrático de Direito. Ao minimizar a situação da Venzuela, pode levar a entender, aos eleitores que votaram no PT para salvaguardar a democracia, que cometeu estelionato eleitoral