O ministro Luís Roberto Barroso já foi atacado em público e envolvido em polêmicas. Alçado à presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), tomou para si a missão de baixar a fervura e distensionar as relações – especialmente com o Congresso Nacional.
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Foi este o tom da entrevista exclusiva que Barroso concedeu à coluna na noite de segunda-feira (6), após uma palestra em Florianópolis.
– Eu não tenho nenhuma pretensão política, de modo que me sinto um pouco autorizado a fazer esse papel de tentar pacificar o país – disse o ministro.
Bem-humorado, apesar da agenda intensa do dia – antes de SC, ele passou por São Paulo, onde fez uma plestra e visitou uma comunidade – Barroso falou na entrevista sobre sua relação com as novas tecnologias, da iniciativa de trazer a Inteligência Artificial para agilizar a montanha de 80 milhões de processos que tramitam no Judiciário brasileiro, e rejeitou qualquer referência a “ativismo judicial”.
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Sublinhou que “as pessoas chamam de ativismo as decisões que não gostam”, e disse que, num país complexo como o Brasil, ser juiz não permite “disputar torneio de simpatia”.
-Alguém me disse – o Supremo só tem 49% de aprovação. Eu respondi: “Tudo isso?”. Porque desagradamos muita gente por dever de ofício.
Veja a entrevista completa:
Desde que assumiu a presidência do Supremo o senhor tem adotado uma discurso de distensionamento com os demais poderes. No momento que vivemos hoje, é possível apaziguar essa relação?
Não é um discurso, é uma prática, uma convicção sincera de que o ambiente deve ser efetivamente distensionado. O Brasil precisa cumprir uma agenda de desenvolvimento, de progresso, de justiça social, e acho que há uma agenda comum para o Brasil que pode unir liberais, conservadores — e isso está na Constituição: combater a pobreza, crescimento econômico, prioridade para a educação básica, investimento em ciência, tecnologia, em segurança pública, saneamento básico, habitação popular, proteção popular. Essa não é uma agenda de esquerda ou de direita. É uma agenda patriótica, no melhor sentido do termo. Deixei uma advocacia, graças a Deus de sucesso, para trabalhar pelo Brasil. Acho que o que o Brasil precisa é dessa pacificação, é de pessoas que possam voltar a sentar na mesma mesa, mesmo quando pensam de maneira diferente.
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O senhor assumiu a presidência do Supremo num momento em que o Congresso tem medido forças com o STF, inclusive com propostas que limitam a abrangência dos votos dos ministros. Como o senhor está lidando com isso?
Desenvolveu-se no Brasil, em uma linhagem política, a crença equivocada de que o Supremo era o problema. Ou de que o Supremo dificultava a governabilidade. Mas, se você pedir um exemplo de qual foi a decisão do Supremo que dificultou a governabilidade, as pessoas não sabem dar. É apenas um discurso. A verdade é que uma parcela da população passou a achar que o Supremo era um problema. E essas pessoas votam, têm representantes que correspondem aos anseios de seu eleitorado. O esforço que faço é demonstrar para esse eleitorado que o Supremo não é parte do problema, é parte da solução. Nós tivemos um papel decisivo na pandemia, salvamos milhares de vidas, tivemos um papel muito importante na proteção da democracia. Agora, decisões que as pessoas possam discordar, é natural, é parte da vida. E o Supremo decide questões que contrapõem o agronegócio e os ambientalistas, que contrapõem comunidades indígenas e agricultores. Estamos sempre, em alguma medida, desagradando alguém. Ser juiz em um país complexo como o Brasil, com uma Constituição que cuida de tantos assuntos, não permite disputar um torneio de simpatia. É inevitável desagradar alguém. Por isso o prestígio de um Tribunal não pode ser medido em pesquisa de opinião pública. Alguém me disse – o Supremo só tem 49% de aprovação. Eu respondi: “Tudo isso?”. Porque desagradamos muita gente por dever de ofício.
O senhor deu a entender que não tem pressa em pautar temas mais polêmicos quando se fala em pauta de costumes, como a descriminalização do aborto. Por quê?
Eu fui presidente do TSE e pautei tudo o que aparecia e, no geral, em ordem cronológica. Como regra geral, acho que não tem tema tabu. Mas a questão da interrupção da gestação, primeiro iria acirrar um pouco a tensão num momento em que acho que é importante distensionar com o Congresso. Segundo, acho que este é um debate que não está maduro na sociedade ainda. As pessoas não entenderam ainda, no geral, uma distinção que é muito importante de se fazer. Eu, como quase todas as pessoas que conheço, sou contrário ao aborto. Ninguém acha que é uma coisa boa. Portanto, o papel do Estado é evitar que a interrupção da gestação ocorra. Dando educação sexual, dando contraceptivos e dando apoio à mulher que queira ter um filho e esteja em situação adversa. Ninguém é a favor do aborto. O que estamos colocando em discussão é se essa mulher tem que ser presa. Esse é o debate que precisa ser feito. Ser contra, pregar contra e não fazer, é diferente de achar que a mulher deve ser presa. A prisão da mulher, a criminalização, não é praticada em nenhum país desenvolvido do mundo. Nem nos Estados Unidos, onde eles devolveram o poder para os estados, mas não há uma criminalização federal. Nem no Canadá, nem no Reino Unido, nem França, nem nos países mais católicos, na Itália, nem na Espanha, nem em Portugal, na América Latina nem na Argentina, nem na Colômbia, no México. Portanto, o debate que se tem que travar é entender do que se trata: não prender a mulher que passa por uma situação tal que se viu na necessidade de fazer uma interrupção da gestação.
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O que vai marcar a sua gestão à frente da Suprema Corte?
Tenho alguns empenhos. Um é melhorar a eficiência da Justiça, diminuindo a duração dos processos e enfrentando alguns gargalos. A missão de uma Suprema Corte que é proteger os direitos fundamentais, e no próprio âmbito do Judiciário (pretendo) promover uma feminilização dos Tribunais, com promoções paritárias entre homens e mulheres, e buscar também a equidade racial. A gente tem uma ideia de financiar bolsas de estudo para as pessoas negras, para que possam fazer dois anos de curso se preparando para concurso para a magistratura. Portanto, melhorar a qualidade da Justiça, proteger os direitos fundamentais e defender a democracia. Eu não tenho nenhuma pretensão política, de modo que me sinto um pouco autorizado a fazer esse papel de tentar pacificar o país. De novo, pacificar não significa ninguém abrir mão das próprias ideias, de sua visão de mundo. Significa apenas tratar os outros com respeito e consideração. Precisamos retirar, erradicar essa novidade que apareceu na vida brasileira que é o ódio, a intolerância, a agressividade. Isso nunca foi típico do Brasil, e acho que nós precisamos retomar o processo civilizatório de respeito e aceitação do outro.
O senhor tem rejeitado as acusações de ativismo judicial…
Não existe.
Por outro lado, o senhor tem chamado atenção para o excesso de judicialização no país. É esse o maior problema que temos hoje?
O Brasil tem excesso de judicialização, e não tem ativismo. O ativismo seria o exercício impróprio do papel judicial. Isso não existe. Geralmente as pessoas chamam de ativismo as decisões que não gostam. Mas elas são em cumprimento da Constituição. Vou dar um exemplo que provocou choro e ranger de dentes: a instalação da CPI da Covid. O que aconteceu ali? Um terço dos senadores pediu a instalação da CPI e indicou qual o fato que gostaria que fosse investigado. A Constituição prevê que, se um terço dos senadores pedirem, e se indicarem o fato a ser investigado, eles têm o direito constitucional de que seja instalada a CPI. De modo que o Supremo mandou instalar a CPI e provocou grande contrariedade, quando na verdade a gente estava apenas cumprindo a Constituição. Há decisões mandando instalar CPI no governo Fernando Henrique, no governo Lula, no governo Dilma. Você não pode dizer que é ativismo porque não gosta da decisão. Você pode até não gostar da Constituição. O que é uma pena, porque a Constituição é muito boa. Mas parte do ressentimento que existe é de gente que não gosta da Constituição. E tem gente que não gosta de democracia.
A Justiça está preparada para a chegada da Inteligência Artificial, para o bem e para o mal?
Nós levamos décadas até que milhões de pessoas adquirissem um aparelho de televisão. Em dois meses, tinha mais de dois milhões de usuários no ChatGPT. A velocidade da transformação é muito grande, a chegada da Inteligência Artificial é inexorável, e o que temos que fazer é que ela seja capaz de servir para a causa da humanidade, não desvie de uma trilha ética. Mas ela vai ser decisiva na Justiça. Nós temos no Brasil 80 milhões de processos, com um média de duração de quatro anos e meio. É muita coisa. Já fiz diversas encomendas de Inteligência Artificial para enfrentarmos o congestionamento do Judiciário, automatizarmos procedimentos, acelerarmos a prestação da jurisdição. A gente sabe que está sendo velho pela dificuldade que sente quando entra em contato com uma ideia nova. Eu, como estou na minha terceira juventude, estou investindo energia em entender a Inteligência Artificial, tenho estudado, e tenho procurado trazer para o âmbito do Judiciário. A gente não pode fugir o futuro.
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Temos eleições pela frente. Vai ser um desafio para Justiça tratar com o lado ruim dessa nova tecnologia?
Um dos desafios do uso da Inteligência Artificial é o potencial que ela tem para massificar a desinformação, a mentira, as teorias conspiratórias. Precisamos, além de alguma dose de repressão, também de educação midiática. Boa parte das informações falsas são inocentemente ou ingenuamente repassadas por pessoas que recebem e passam adiante sem minimamente conferir a autenticidade. Portanto, vai ter que acontecer um pouco do que lá na minha primeira juventude nós vimos nas ruas, quando havia placas com “não jogue lixo na rua”, ou nas estradas. As pessoas precisavam ser educadas a se comportarem socialmente. Acho que com as plataformas digitais e o uso da Inteligência Artificial vai acontecer a mesma coisa. As pessoas de bem, que querem levar uma vida ética, vão ter cuidado. O mal residual sempre vai existir, mas não pode mais do que o bem.