A jornalista Miriam Leitão falou nesta quinta-feira (18), em entrevista exclusiva à NSC, sobre o cancelamento de sua participação na 13ª Feira do Livro de Jaraguá do Sul, junto com o marido, o sociólogo Sérgio Abranches. O desconvite, decidido pela organização nesta semana após uma série de ameaças por meio das redes sociais, repercutiu em todo o país – e rendeu uma série de mensagens de apoio ao casal de escritores.

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Miriam, que havia se manifestado de forma sucinta desde que o caso veio à tona, considerou importante falar aos catarinenses. Entre um compromisso de trabalho e outro, a jornalista conversou por telefone sobre democracia, direita, esquerda, redes sociais e livros.

Disse que sempre se sentiu bem-vinda a Santa Catarina, e alertou para o avanço do autoritarismo no Brasil. A conversa terminou um assunto muito caro a Miriam Leitão: a literatura. Autora de 11 obras, prestes a lançar a 12ª, a jornalista fala com entusiasmo sobre a experiência como escritora. 

Você esperava esta reação em Santa Catarina?

Não, eu não esperava, nem meu marido, o Sérgio. Nós fomos convidados para falar da biblioteca afetiva, então estávamos até já preparando alguma coisa. A gente adorou o título, sabe? Para falar de literatura, que a gente gosta tanto. Falar de livros, para quem escreve livros, é um prazer enorme. Então, quando somos chamados para falar de livros, achamos que é um privilégio. O assunto, como o (Carlos) Schroeder (diretor artístico da Feira) tinha pedido, era os livros que nos marcaram, os livros que nos fizeram leitores, que nos fizeram escritores, que nos uniram, que a gente tem em comum, na cabeceira, e que nós escrevemos. Então, era uma pauta forte, e tínhamos muita coisa para falar sobre esses assuntos.

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A reação, a gente não esperava porque não era um debate de política e economia. Era para falar de uma coisa que deveria unir as pessoas, que é o livro. Por isso foi surpreendente.

Se o convite tivesse sido mantido, você viria a Jaraguá do Sul?

Tenho excelentes lembranças de todas as vezes que fui a Santa Catarina. Fui a uma feira em Joinville há dois anos, e foi muito gostoso. Já fui a Blumenau, já fui a debate com empresários. Fiz a apresentação de política e de economia, em Joinville, e depois fui falar com leitores, inclusive com crianças, porque parte da minha obra é literatura infantil. Fui contar histórias, enfim, tenho ótimas lembranças. Recentemente, quando fiz uma série de reportagens chamada História do Futuro, fui a Brusque entrevistar o seu Walter Orthmann, que é uma pessoa que quebrou recordes trabalhando na mesma empresa. Uma pessoa maravilhosa, e a gente contou a história dele. E em Florianópolis eu fui ao Sapiens Park, fui ver a ciência, o futuro, a tecnologia da energia solar aplicada das mais diversas formas em SC, que tem uma baixa incidência solar em comparação com outros Estados, mas que, pela tecnologia, desenvolveu isso.

Então, para mim SC é um Estado de que tenho ótimas lembranças. Do jeito que as coisas andaram eles (a Feira) preferiram cancelar, e está cancelado. Mas não me sinto rejeitada em Santa Catarina.

Você foi premiada pela Associação Nacional de Jornais como símbolo de resistência à hostilidade contra jornalistas dois anos atrás. Mudou alguma coisa de lá pra cá?

Acho que teve uma piora, sim. A intolerância cresceu muito, foi estimulada, inclusive pelo próprio governo. Já fui alvo da intolerância da esquerda e da direita. Ao contrário do que dizem, não é viés ideológico. É um jornalismo que incomoda, porque não vou ficar falando coisas que interessam aos poderosos. Quem está no poder, quem está no governo, tem que ouvir críticas. Sempre fiz meu jornalismo não por automatismos, não sou oposição ao governo. A nenhum governo. Apenas vou mostrar sempre os defeitos e problemas. Isso incomoda. Atualmente, pela maneira como o presidente Bolsonaro, seus filhos, seu grupo mais próximo, seu grupo ideológico faz, de disseminar o ódio nas redes, isso tem aumentado. Mas que fique claro que também fui hostilizada pela esquerda.

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E como você se sentia quando os petistas lhe chamavam de conservadora?

A economia tem que estar estabilizada, com as contas controladas. E o governo Dilma cometeu muitos erros. O governo do Lula também, mas o governo Dilma teve mais erros, e eu apontei. Virou o livro "A Verdade é Teimosa", com as vezes em que eu apontei os erros que poderiam nos levar à recessão, e de fato levaram. Eu não me sinto conservadora. E não me sinto petista.

Não sou nem o que o PT diz de mim, nem o que os bolsonaristas hoje dizem de mim. Eu sou uma jornalista.

E quero tanto a estabilidade econômica, quanto quero a inclusão social. Quero que haja mais brasileiros dentro do progresso. Quero inclusão dos negros, escrevi muito a favor das cotas. Gosto do programa Bolsa Família desde que era Bolsa Escola no governo Fernando Henrique, porque eu fui visitar as famílias que recebiam, e vi a diferença, o antes e depois da rede de atenção social. Sou a favor da proteção do meio ambiente, da proteção dos direitos dos índios, que cumprem um papel que as pessoas não entendem muito no Brasil, eles são parte da proteção do nosso meio ambiente. Como jornalista, tento me informar e mostrar o que está sendo feito errado em cada uma dessas áreas. A esta agenda social, eu sou absolutamente atenta. Mas eu também não quero uma economia desorganizada. Até porque sei que se desorganiza a economia, produz desordem nas contas públicas, você acaba provocando mais problemas exatamente para os pobres. Não é de direita ter uma economia estabilizada, é racional. E também não é só de esquerda a proteção do meio ambiente, a proteção social, a melhoria da educação. Isso também é racional. Então, às vezes incomodo de um lado, às vezes de outro. O que aconteceu (em Jaraguá do Sul) é inaceitável não por mim, nem pelo Sérgio Abranches. É inaceitável que se tente calar a voz da qual você discorda. A democracia pressupõe a polifonia. São muitas vozes, e elas precisam conviver. Eu cheguei à juventude num país em ditadura, sob pensamento único. E isso eu abomino, venha de onde vier. Gosto da diversidade de pensamento, da divergência.

A divergência não me ofende. Faz parte do exercício democrático a convivência com a diferença. Se 3,5 mil pessoas não querem me ouvir, discordam muito de mim, respeito inteiramente. Mas quando passam a calar a voz, isso era viver na ditadura.

E isso é muito ruim. Não por mim, eu tenho vários canais para falar. É ruim para a democracia. A democracia é que não pode tolerar que um grupo de pessoas tente calar o que os outros vão falar. Nem sabiam o que eu iria falar, ou meu marido. Sou fruto do livro, uma leitora compulsiva, e isso me tornou quem eu sou. Isso era o que eu iria falar para o público que estivesse lá. 

Você citou a ditadura e o cerceamento à liberdade de expressão. Estamos em situação parecida?

Não é a mesma coisa. Quando cheguei à juventude a ditadura estava no pior momento, depois do AI-5, era o terror. Mas a democracia é frágil pela própria natureza. É uma coisa que o Sérgio gosta muito de falar. A democracia tem que dar voz até a seus inimigos. Essa fragilidade é da natureza dela, se for calar as pessoas que pensam diferente, ela deixa de ser democrática. Por isso é que temos que ficar atentos o tempo todo, a democracia tem que ser protegida sempre.

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Vozes muito autoritárias e agressivas têm tentado calar a imprensa, ou desmoralizar a imprensa, e o pior é que isso tem apoio, às vezes, do próprio presidente da República.

Não estou falando deste caso específico, mas quando ele vai, ou seus filhos, para a mídia social, para tentar desmoralizar a imprensa brasileira. Ele pode discordar, tem todo o direito, mas tenta desautorizar e desmoralizar. A gente sabe como as democracias morrem. Hoje de maneira diferente daquela, ninguém imagina mais tropas saindo à rua, coturnos batendo, marchando na Avenida Rio Branco (RJ), mas acontece que ela pode ir demolindo as instituições. E aí, é importante que quando tem um ataque como esse, uma ameaça, uma intimidação, que as pessoas não se intimidem. A luta pela democracia é constante. Ela é a maior preciosidade que a gente conquistou.

Através dela a gente teve outras conquistas, a democracia nos trouxe a estabilização da economia, o aumento da inclusão, medidas de proteção ambiental, leis, poderes. Nos permitiu o combate à corrupção.

Quando acham que é preciso eliminar, até fisicamente, o adversário, a pessoa que pensa diferente, aí estamos começando a matar a democracia. 

Qual o papel que as redes sociais têm nessa situação?

É como uma estrada, você pode ser um bom ou mau motorista. O problema é que tem que ser combatida a fake news, a mentira que é deliberadamente distribuída. Por exemplo, por mais que eu já tenha publicado, O Globo já tenha publicado, todos os órgãos em que eu trabalho já tenham publicado que eu jamais assaltei banco, eles publicam que eu assaltei banco. Por mais que eu tenha dito que nunca pedi indenização, não recebo um tostão do Estado brasileiro, que é mentira que eu tenha pensão política, eles escrevem que eu tenho. Isso é usar a rede para disseminar a mentira, uma falsidade, é uma arma suja. 

Como você vê a nossa legislação em relação a isto?

Tudo é tão novo, estamos aprendendo a lidar. Temos que manter liberdade de expressão em todos os meios, e ao mesmo tempo conter o crime. A fake news é um crime, e a disseminação de ódio é crime, a ameaça, às vezes de agressão física, é crime. Quando se faz isso na rede, fica escondido atrás do anonimato, do perfil falso, mas tem uma pessoa ali atrás. Alguém programou, alguém pagou para que aquilo fosse multiplicado, mesmo que através de robôs. Temos que estudar como lidar com isso. É um desafio para o Brasil e para o mundo, e é outra frente de luta pela democracia para que o debate tenha diversidade, tenha credibilidade, qualidade. Não pode ser um local onde as pessoas são ameaçadas, agredidas, ridicularizadas. Eu virei jornalista porque sempre quis estar na conversa brasileira. E permanecerei na conversa brasileira. 

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Qual o papel da literatura neste contexto?

Nos momentos de dificuldade nacional, como nós estamos vivendo agora, a literatura tem um papel fundamental. Na minha vida e do Sérgio, é que o falaríamos aí, a literatura foi fundamental. Nós amamos os livros, escrevemos diariamente, nos alegramos a cada livro que a gente publica. Na ditadura, por exemplo, a literatura era o que nos mantinha vivos em alguns momentos. A gente tinha tanta pressão sobre nós, sobre aquela juventude, então ler um livro como Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez), a literatura de grande qualidade, era uma forma de respirar. Nos momentos de muito autoritarismo, de muito obscurantismo, e estamos vivendo um momento de muito obscurantismo no Brasil agora, a literatura é que faz a gente voar, faz a gente ser livre, se realizar. Tem um papel fundamental nessa travessia.

No período em que fui presa (pela ditadura) eu fui proibida de ler. Pedia livros, e não me deixaram ler um livro sequer. E a sensação física de estar lá sem livros era de asfixia. Então, para mim, o livro é oxigênio.

Você tem premiados livros infantis. Diante do papel que a literatura teve na sua vida, o que você diria às crianças neste Brasil de hoje?

Eu quero, na literatura infantil, fazer com que a criança ache o livro um grande brinquedo, uma coisa gostosa. Da mesma forma que eu tinha esse prazer na minha infância, quero que as crianças tenham. Não ficar dando lição de moral, as mensagens são bem sutis. Meu primeiro livro, que tem uma pegada ambiental, é uma aventura no mundo dos pássaros. Eles passam por situações de medo, de perigo, e começam a fazer um plano para haver  mais árvores para eles terem mais ninhos. Se você lê o livro, que chama Perigosa Vida dos Passarinhos Pequenos, a questão ambiental está ali, mas não estou falando em sustentabilidade, estou simplesmente contando uma história. O segundo livro é sobre o prazer da leitura, chama A Menina de Nome Enfeitado. Depois, o terceiro, combate a discriminação de cor, de forma saborosa. O livro chama Flávio, o Bolo de Chocolate. A criança tem que ser criança, não se pode chegar com um assunto pesadão. Tem que chegar com uma história, que sutilmente vai passar valores. O respeito à diversidade, à diferença, ou o respeito ao meio ambiente.

O livro teve um papel importante na sua infância?

Na minha infância, foi total. Éramos eu e o livro, o livro e eu. Eu simplesmente não fazia mais nada, um vizinho veio dizer para a minha mãe que eu era esquisita, porque ficava o tempo todo só lendo. Tinha um prazer, tenho até hoje, na leitura. Quando fui para literatura infantil, foi para encantar as crianças como eu fui encantada. Literatura é fundamental, sonhei com isso. Sonhei em ser escritora, em ser jornalista. Sou o que sonhei ser, sou uma pessoa realizada, de bem com a vida.

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E acho que estamos vivendo um momento difícil no Brasil. E vou ficar no meio desse debate, mostrando o que tem sido feito de errado, diariamente.

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