Décadas de pequenos avanços nas políticas de inclusão das pessoas com deficiência no Brasil estão sob a ameaça de um decreto do presidente Jair Bolsonaro, que se apresenta como “nova política nacional de educação especial”. Na prática, a medida acaba com a obrigatoriedade de que as escolas regulares matriculem alunos com deficiência e estimula a criação de escolas e salas de aulas específicas para absorvê-los– um modelo excludente e segregador.

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É preciso observar que tal medida vem justamente do governo que começou com um discurso oficial traduzido em Libras pela primeira dama, Michele Bolsonaro. Uma política de aparências.

Sob o verniz de uma suposta ‘liberdade de escolha’ dos pais, que teriam o direito de decidir se querem os filhos matriculados ou não em uma escola tradicional, o decreto governamental corrói a educação inclusiva, que traz os alunos para o mesmo ambiente de aprendizagem – e que ainda engatinha no país.

Oficialmente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência virou emenda constitucional em 2009. Isso garante, como direito constitucional, que a educação seja inclusiva em todos os níveis e proíbe a exclusão de alunos por alegação de deficiência.

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Significa que o decreto de Bolsonaro conflita com a Constituição – em Santa Catarina, a Comissão do Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB chamou atenção para esse fato em uma nota de repúdio, assinada pelo presidente, Anselmo Alves, e a relatora, Carla Rosa Gonçalves.

O texto ressalta as inconsistências jurídicas do decreto, e o quanto ele é pernicioso às políticas de inclusão. “Implica em graves retrocessos, no que tange à proteção de direitos humanos e a garantia da máxima efetividade do direito fundamental à educação inclusiva de qualidade, na medida em que o Decreto retira a Responsabilidade do Estado, e transfere essa mesma responsabilidade com o argumento do ‘direito de escolha das famílias’, retornando ao modelo médico da deficiência, onde se preconiza que a pessoa com deficiência que tem que se adaptar ao modelo educacional inclusivo e não o contrário”.

A Comissão diz, ainda, que “privar as pessoas com e sem deficiência do convívio é também privar a construção diária de uma sociedade inclusiva, acolhedora e que valoriza a diversidade”.

Incluir os alunos com deficiência nas salas de aulas vai além dos limites da educação formal, porque reflete o tipo de sociedade em que queremos viver. Em última medida, a segregação nas salas de aula significa o retorno da segregação social, amplamente vivenciada pelas pessoas com deficiência ao longo de décadas no Brasil.

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Veja a nota na íntegra:

“A Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência da OAB/SC, após realizar análise técnico-jurídica acerca do Decreto nº 10.502/2020, vem a publico se posicionar de forma contrária ao mesmo, por estar manifestamente em desconformidade com a Carta Magna, com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e com a Lei Brasileira de Inclusão.

Neste sentido, vez que o Brasil migrou do modelo médico da deficiência para o novo paradigma sobre a deficiência, quando ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York e o seu Protocolo Facultativo sob este novo Paradigma nos moldes do art. 5º.,parágrafo 3º., da Constituição Federal, o que lhe assegurou o status de emenda constitucional.

Insta salientar que o Brasil, ao ratificar a referida Convenção, comprometeu-se nacional e internacionalmente a avaliar a deficiência relacionando a mesma com a interação entre os impedimentos de longo prazo e as barreiras ambientais.

Assim, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e, consequentemente, contrária ao bloco de constitucionalidade em função do Decreto n° 6.949/2009 que determina como princípios gerais a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade e a igualdade de oportunidades, sendo o Sistema Educacional Inclusivo em todos os níveis na forma do artigo 24.

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Ainda, o artigo 24 dispõe que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência, sendo que as pessoas com deficiência podem ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem.

Portanto, o referido Decreto implica em graves retrocessos, no que tange à proteção de direitos humanos e a garantia da máxima efetividade do direito fundamental à educação inclusiva de qualidade, na medida em que o Decreto retira a Responsabilidade do Estado, e transfere essa mesma responsabilidade com o argumento do “direito de escolha das famílias”, retornando ao modelo médico da deficiência, onde se preconiza que a pessoa com deficiência que tem que se adaptar ao modelo educacional inclusivo e não o contrário.

O Decreto no. 10.502/2020, quando institui escolas e classes especializadas contrariou todo o ordenamento jurídico existente no que tange à Educação Especial na perspectiva inclusiva, uma vez que a mesma entende que não se pode retomar o tempo de exclusão e segregação das pessoas com deficiência aos ambientes exclusivos e excludentes. A entidade especial tem sua função no contra turno para o Atendimento Educacional Especializado – AEE, com a oferta de serviços de saúde e capacitação no trabalho, assim como para atividades aos adultos com deficiência que não cumpriram o currículo e, ao cumprir, devem ser encaminhados para ambientes externos às salas de aula em busca de melhor qualidade de vida.

Nesta esteira, O Decreto no. 10.502/2020, ao trazer esse modelo como substitutivo ao atual, é um retrocesso inconstitucional e desnecessário, e deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro.

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Por oportuno, as entidades fazem um papel fundamental na vida das pessoas com deficiência. No entanto, aquelas que defendem a substituição do ensino regular precisam compreender o significado da luta de inclusão – uma lição fundamental de humanidade. A inclusão significa um modo de convivência sem exclusões, sem discriminações em um ambiente de fraternidade. A inclusão envolve um processo de reforma sistêmica, incorporando aprimoramentos e modificações de conteúdo, métodos de ensino, abordagens, estruturas e estratégias de educação para superar barreiras, com a visão de oferecer a todos os estudantes uma experiência e um ambiente de aprendizado igualitário e participativo, que corresponde às suas demandas e preferências.

Ademais, privar as pessoas com e sem deficiência do convívio é também privar a construção diária de uma sociedade inclusiva, acolhedora e que valoriza a diversidade.

Insta salientar, que a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) em seu artigo 28, assegura a oferta de sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades de ensino. Estabelece ainda a adoção de um projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, com fornecimento de profissionais de apoio. Essa é a forma de educação que se deve buscar, aplicar e cobrar a aplicação, não podendo as barreiras serem justificativas para o retorno das classes especiais e escolas especializadas. O retorno dessas classes, ainda mais institucionalizadas, trará a segregação, isolando novamente os alunos com deficiência dos demais.

Não obstante, o risco é grande de voltar a ter uma geração que não conviverá na escola com as pessoas com deficiência, e sem a convivência não se aprenderá com as diferenças. E sem esse convívio, não se desenvolve respeito, empatia, bem como as pessoas com deficiência não exercerão plenamente seus direitos alcançados e garantidos pelas leis que hoje primam pela inclusão. Isso não pode ser uma possibilidade de escolha, no presente caso dos familiares – estudar ou não em escola especial. A inclusão, independentemente do tipo e grau de deficiência, é garantido por lei e toda a adequação deve ser feita, pela escola, sob pena de ser demandada judicialmente.

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Ainda, o referido Decreto não observou os parâmetros de constitucionalidade, convencionalidade e legalidade, em face à temática Educação Especial na perspectiva Inclusiva, vez que não trouxe à discussão necessária e obrigatória ao amplo Movimento das pessoas com deficiência, suas organizações, e entidades representativas, violando os princípios democráticos e garantias fundamentais para construção e alteração de quaisquer direitos atinentes às pessoas com deficiência.

Ressalta-se ainda que a nossa Carta Magna não permite que decretos autônomos emanados pelo Poder Executivo lancem novos conceitos sobre Política Pública voltada às Pessoas com Deficiência. Os decretos autônomos emanados pelo Poder Executivo servem apenas para regulamentar instrumentos já existentes em lei e devem ser restritos ao que a lei dispõe, não podendo de forma alguma ultrapassar seus limites, lançando novos conceitos que vão de encontro as normativas legais já existentes.

A criação de uma Política Pública exige a participação social por meio de audiências públicas e outros instrumentos de participação popular que não foram utilizados. Destarte, a lei tem que ser cumprida, fazendo com que as pessoas com deficiência efetivamente sejam incluídas. Este é o entendimento da Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência da OAB/SC.

Em razão do exposto, esta Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência sugere a Ordem dos Advogados de Santa Catarina, a publicação de uma NOTA DE REPÚDIO, com o objetivo de firmar o seu posicionamento contrário ao referido DECRETO 10.502, que Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, por se tratar de um grande retrocesso à Educação Especial na perspectiva inclusiva, bem como por contrariar dispositivos legais internacionais, constitucionais e infraconstitucionais, onde deverá ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro”.

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