Um forte esquema de segurança, com gradis, ocupa o Hotel Mercure, na área mais movimentada da Avenida Atlântica, em Balneário Camboriú. Uma pequena multidão se aglomera ao redor. Subitamente, os celulares são apontados todos na mesma direção e uma onda de fãs, aos gritos, cerca Jair Bolsonaro (PL), que caminha ao lado do governador Jorginho Mello (PL).
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A cena da chegada do ex-presidente ao hotel na região central de Balneário Camboriú, no dia 6 de julho, ajuda a explicar por que os Bolsonaros fizeram de Santa Catarina um refúgio. Naquele fim de semana, a cidade e o Estado se tornaram o epicentro da direita brasileira, na edição tupiniquim do autodenominado “maior congresso conservador do mundo”, que tinha como um dos organizadores o filho zero-três do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro (PL).
No setlist, nomes como o do presidente argentino Javier Milei, Michelle Bolsonaro, e o próprio Jair Bolsonaro. Para acompanhar as palestras, os apoiadores pagaram ingressos de R$ 249. Entre eles havia desde empresários até estudantes do Ensino Médio, seguidores do deputado federal e influencer Níkolas Ferreira (PL). Alguns também puderam jantar com o ex-presidente, ao preço nada módico de R$ 5 mil por pessoa. Inclusive candidatos da chamada direita tradicional, ávidos pela unção do bolsonarismo — uma bênção que, em SC, virou salvaguarda e passaporte para a disputa nas urnas.
A chamada “direita moderada” no Estado aprendeu rapidamente que o efeito Bolsonaro pode causar em uma eleição. Em 2022, além de Jorginho, o bolsonarismo também elegeu a maior bancada de Santa Catarina no Congresso. São seis deputados do PL e um senador. O ex-presidente fez 3 milhões de votos no Estado no segundo turno em 2022 – quase 70% dos votos válidos, contra 30% de Lula.
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Em 2018, candidatos tradicionais da direita já haviam sido “engolidos” pelo tsunami bolsonarista e o Estado elegeu um desconhecido coronel do Corpo de Bombeiros governador. Carlos Moisés, no entanto, nunca caiu nas graças do então presidente, que preferia não ter candidato ao governo de SC naquela eleição. A relação azedou de vez após falas críticas do então governador ao bolsonarismo — e o resultado foi devastador. Chamado de traidor, Moisés não conseguiu sequer ir ao segundo turno em 2022.
Não é à toa que o governador Jorginho Mello não perde as oportunidades de renovar o carimbo bolsonarista a cada encontro com o ex-presidente. Mesmo que isso envolva encerrar às pressas uma missão em Dubai para participar de uma manifestação convocada por Bolsonaro, como ocorreu em fevereiro deste ano.
A sugestão de sediar o congresso conservador em Balneário Camboriú foi da deputada federal Julia Zanatta (PL), e levou em consideração questões logísticas, como a estrutura do Expocentro e a proximidade de dois aeroportos, Navegantes e Florianópolis. Mas também a identidade “à direita” de Santa Catarina.
— Santa Catarina é o estado mais bolsonarista, super à direita, então é a vitrine do conservadorismo — disse Eduardo Bolsonaro.
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Acompanhado de Bolsonaro no voo para Santa Catarina, o senador Jorge Seif (PL) profetizou: “Já, já pousaremos em solo sagrado”. A participação no congresso foi a 14ª viagem de Bolsonaro ao Estado. Mas a repercussão do evento e a predileção dos Bolsonaro leva a um questionamento: seria SC, de fato, o epicentro da direita no país?
Para Guilherme Russo, cientista político e diretor de Inteligência e Insight na Quaest Consultoria e Pesquisa, a resposta é sim, e não.
Apesar da votação estrondosa para Bolsonaro, o eleitor catarinense não foi o que mais votou no ex-presidente nas duas últimas eleições presidenciais. Acre e Mato Grosso, por exemplo, tiveram percentuais maiores. O que torna o papel de SC tão relevante para o movimento de direita, na opinião de Russo, é a tendência de uma parte dos eleitores catarinenses à direita radical, menos tolerante com as minorias, e muito mais barulhenta:
— Proporcionalmente, dentro dos estados, Santa Catarina é onde tem maior prevalência de uma direita radical.
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Um Estado conservador
Se há um consenso na política de SC, da direita à esquerda, é que o eleitorado catarinense é conservador. Mas, na história recente, houve um momento “fora da curva”. Em 2002, o Estado deu uma vitória histórica a Lula, com 66% dos votos válidos. Foi a maior votação estadual do petista, que também influenciou a eleição de prefeitos do PT em algumas das maiores cidades do Estado, pouco tempo depois. A relação de amor, no entanto, durou pouco.
— Houve a virada do Mensalão, a criação dos programas sociais, que passaram a repercutir em estados do Nordeste e do Norte do país. Isso começa a ser emplacado e o cenário muda de forma muito rápida. Tem um realinhamento (do eleitorado) entre 2002 e 2006. Lula passa a ter mais votos no Nordeste e menos no Sudeste e Sul — avalia Guilherme Russo.
Bolsonarista, a deputada federal Caroline de Toni (PL) avalia que houve uma ruptura entre o que o eleitor catarinense esperava e o que a esquerda entregou. Presidente da Comissão e Justiça da Câmara dos Deputados, ela foi a deputada mais votada de Santa Catarina nas últimas eleições.
— Com o passar dos anos do governo, os catarinenses viram que o governo da esquerda não combina com os valores tão defendidos e tão caros para nós. A exemplo do desarmamento, do aborto, da destruição de valores, da família, de demarcações de terras indígenas, da defesa por movimentos como MST, da promoção de benefícios assistencialistas. Quando surge Bolsonaro, na defesa das pautas que nos são caras, armamento, vida, defesa da propriedade e das liberdades, valorização do trabalhador, dos empreendedores, vindo na contramão de Lula e da esquerda, o catarinense depositou seu voto de confiança — diz.
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Guilherme Russo diz que o sentimento de antipetismo, que ganhou força no Mensalão, explodiu no impeachment de Dilma Rousseff. Naquela altura, o fenômeno foi reforçado por um viés antipolítica, uma repulsa aos partidos de forma geral.
— Esse sentimento contra as elites é fundamental para entender o bolsonarismo e a direita radical. Bolsonaro incorpora, ao mesmo tempo, o sentimento antipetismo e antissistêmico — alega.
Carol de Toni diz que a bancada catarinense na Câmara tem refletido a tendência conservadora do eleitorado — mesmo entre os deputados de centro:
— O PL na Câmara tem 93 deputados, é a maior bancada da Câmara, em segundo lugar, a Federação PT/PCdoB/PV tem 81. Apesar disso, em SC temos apenas 2 deputados do PT, mesmo com tanta polarização. Apesar de, em inúmeras votações, os deputados de centro votarem com o governo, nas pautas de costume os dois deputados petistas ficam sozinhos nas votações. Demonstrando que sim, a bancada catarinense reflete essa identificação.
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“SC não é fascista”
Segundo deputado federal mais votado de Santa Catarina, eleito pela quarta vez para a Câmara, Pedro Uczai (PT) se sente incomodado com a pecha que o Estado ganhou Brasil afora, de um oásis da extrema direita — o que repercute em Brasília.
— As pessoas se impressionam quando sabem que fui o segundo mais votado. Santa Catarina não é um estado fascista e nem de extrema direita. Em 2018 a extrema direita avançou, em 2022 também, mas o campo democrático popular foi para o segundo turno — afirma, lembrando que a disputa para o governo do Estado se deu entre Jorginho Mello o petista Décio Lima.
Uczai avalia que a extrema direita soma 17% do eleitorado catarinense, o que corresponde à estimativa da Quaest.
— Mas eles fazem barulho — diz.
A análise é semelhante à do pesquisador Adriano Duarte, professor do Departamento de História da UFSC;
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— Não vivemos num estado fascista, mas num estado que momentaneamente tem uma forte tendência conservadora — afirma.
Essa tendência pode ser influenciada, nos próximos anos, pelo que o jornalista Thomas Traumann e o cientista político Felipe Nunes chamam de “calcificação” no livro Biografia do Abismo, lançado em 2023 pela editora Harper Collins. Eles afirmam que o fenômeno brasileiro não é uma polarização, mas uma calcificação de posições políticas que faz com que as escolhas e os debates deixem de ser racionais, mas afetivos. As informações, de um lado ou outro do campo ideológico, são recebidas e internalizadas de acordo com o viés de cada um.
É por isso que denúncias de corrupção envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro não provocam a mesma reação que, no passado, o Mensalão e a Lava-Jato provocaram em uma parcela do eleitorado em relação ao PT.
Pedro Uczai acredita que se trata de um fenômeno temporário.
— O que vai mudar esse cenário é o governo federal fazer como foi no ano passado, com investimento e entregas. Seguiremos criticando a extrema direita porque eles escolhem um inimigo, atuam com violência, mentira, ódio. Esse jeito de fazer política tem setores conservadores que não concordam. Defender a democracia vai além, é resolver os problemas enquanto eles alimentam a intolerância e o ódio. Por isso vão enfraquecer – avalia.
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No entanto, Guilherme Russo, da Quaest, não vislumbra esse cenário a curto prazo:
— Candidatos mais à direita serão eleitos novamente, certamente teremos uma representação de vereadores bem radical à direita nas próximas eleições em Santa Catarina. Está claro que esta força de direita radical não vai embora nos próximos anos e o fato de termos o governo Lula fortalece esse sentimento antipetista, mantém esse grupo validado.
Conservadorismo na história e no DNA de SC
A identificação de uma parcela do eleitorado catarinense com uma direita radical é histórica. O pesquisador Adriano Duarte, da UFSC, lembra que Santa Catarina foi um dos três estados em que o integralismo brasileiro mais reverberou nos anos 1940, junto com São Paulo e Bahia. Por aqui, os camisas verdes conseguiram conquistar, por exemplo, a prefeitura de Joinville, com Aristides Largura. Organizador da Ação Integralista Brasileira em todo o Norte e Nordeste de SC, ele representava para o eleitorado não apenas um representante do radicalismo político, mas o enfrentamento às oligarquias e aos industriais. Uma espécie de antissistema.
— Santa Catarina sempre foi conservadora. Mas a adesão ao integralismo não era porque se parecia com o nazismo. Era visto como uma alternativa política à dominação das oligarquias. O Partido da Ação Integralista reunia a classe trabalhadora, os pequenos proprietários de terra. Oferecia a eles uma inserção que os outros não ofereciam — explica.
Ele aponta três hipóteses que, antes e agora, ajudam a explicar por que a direita radical encontrou espaço para reverberar em Santa Catarina. A primeira delas é o declínio da pequena propriedade, que sempre foi a base da atividade agrícola do Estado, diferente de outros estados brasileiros. De 1995 a 2017, 18% das pequenas propriedades rurais familiares desapareceram, enquanto a área agrícola cultivada, no mesmo período, aumentou 10%.
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— São dois fenômenos: Santa Catarina está deixando de ser o paraíso da pequena propriedade e a concentração da propriedade está se acelerando. Quem perde o acesso à terra faz o quê? Ou se torna assalariado no meio rural ou migra para as cidades. Mas em ambos os casos suponho que a raiva aumente e que alguém será responsabilizado por aquilo que é vivido como uma perda — pontua.
A segunda hipótese levantada pelo pesquisador está embasada em um estudo da antropóloga catarinense Giralda Seyferth, que criou a noção de colono-operário, avaliando especialmente a região Nordeste do Estado nos primórdios da industrialização. Ela concluiu que as famílias numerosas e a pequena propriedade empurravam, entre o plantio e a colheita, uma parte dos colonos para o trabalho industrial. Significa que o trabalho na indústria não era a primeira fonte de renda, e isso não criou um sentimento de classe como ocorreu, por exemplo, nos estados vizinhos.
A terceira hipótese diz respeito à identificação que o catarinense tem com uma noção idealizada da “herança europeia”.
— Isso aparece na propaganda de seguidos governos municipais e estadual. É como o estado de Santa Catarina se apresenta no cenário nacional e se vende na indústria do turismo. As pessoas começaram a acreditar que são mais alemãs, mais brancas, mais trabalhadoras, menos miscigenadas — diz.
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Guilherme Russo, da Quaest, diz que outro fator que estimula a adesão à direita radical é a recente crise econômica, que o Brasil enfrentou a partir de 2014. É nos momentos de crise que os eleitores buscam soluções mais radicais e precisam de “inimigos”.
— O Brasil não é a maior ilha do mundo, estamos ligados aos movimentos internacionais. Nos últimos 40 anos, o crescimento dos movimentos de extrema direita tem a ver com as transformações do capitalismo, a falta de alternativas. As pautas ideológicas, que mantêm os grupos altamente mobilizados, são simples de compreender. São uma resposta ao medo. Num mundo mais complexo, a extrema direita parece apontar uma solução fácil para problemas que não são fáceis — finaliza Adriano Duarte
João Goulart também caiu nas graças de SC
A relação de Bolsonaro e do bolsonarismo com Santa Catarina, e especialmente com Balneário Camboriú, não deixa de ser curiosa. Afinal, não é o primeiro presidente a cair nas graças da Dubai Brasileira.
O precursor foi o gaúcho João Goulart, o presidente deposto pelos militares acusado de ser “comunista”. Jango teve um caso de amor com Balneário, onde passou muitos verões em família. A imagem dele, ao lado dos dois filhos, foi eternizada em um monumento na Praia Central. A amizade com Jango também marcou o destino do primeiro prefeito de Balneário Camboriú, Higino Pio, que foi deposto, preso e assassinado na Escola de Aprendizes Marinheiros, em Florianópolis, em 1969.
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