Um levantamento da Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), que reúne informações dos cartórios de registro civil em todo o país, mostra que o número de casamentos homoafetivos em Santa Catarina nunca foi tão alto. Em 2018, foram 416 uniões, recorde desde 2016.
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O Estado ainda registrou em dezembro 101 casamentos homoafetivos, três vezes mais do que a média dos outros meses do ano, e um aumento de 180% em comparação com o mesmo mês em 2017, quando houve 36 uniões em SC. O crescimento se repetiu em outros cartórios do país. Em São Paulo, o número de casamentos em dezembro quadruplicou.
O principal motivo, conforme especialistas e entidades representativas, é a preocupação com um possível retrocesso de direitos. Um fenômeno motivado pelo perfil conservador do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e reforçado pela recomendação feita logo após o segundo turno da eleição pela desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB nacional. Ela orientou que casais homoafetivos com intenção de casar acelerassem o processo.
No texto, Maria Berenice alertou para uma eventual medida provisória vinda do governo federal que poderia, em tese, suspender novas uniões. No primeiro mês do novo governo, no entanto, não houve iniciativa neste sentido.
Foi esse alerta que motivou a professora Quimberly Souza, 26 anos, e a auxiliar de produção Patrícia Borereng, 27, de Otacílio Costa, na Serra catarinense, a encaminharem a papelada. Elas namoravam desde 2016, e há um ano decidiram morar juntas. Na primeira semana de novembro, logo após as eleições, deram entrada no processo de união no cartório.
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– O casamento era um sonho das duas, mas estávamos planejando fazer com calma, sem correria. Quando saiu o resultado do segundo turno, decidimos casar logo – conta Quimberly.
Não havia dinheiro nem tempo hábil para economizar para a festa. Quimberly estava desempregada, e Patrícia, trabalhando como autônoma. A solução foi um “financiamento coletivo”, com ajuda do grupo Mães Pela Diversidade.
As contribuições vieram de todo lugar. Mães de Florianópolis, Itajaí e do Rio de Janeiro enviaram recursos para ajudar a pagar os custos. O casamento ocorreu em 14 de dezembro, e a festa para os amigos mais próximos foi na garagem da casa da mãe de Patrícia. A lua de mel foi uma viagem para conhecer o Beto Carrero World, em Penha – presente de uma rádio local.
Profissionais criaram rede estadual de apoio
Por todo o Estado, o auxílio a casais que resolveram apressar o casamento civil criou uma rede de apoio. Fotógrafos, confeiteiros e costureiros se uniram nas redes sociais para proporcionar um momento especial para quem decidiu casar com pouco tempo para o planejamento, como Rafaela Schulka, 21 anos, e Alana Baldo, 22. O casal de Joinville está reunindo a papelada para o casamento civil.
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As duas já moram juntas desde fevereiro do ano passado, mas casar “no papel” ainda não estava nos planos. Uma amiga enviou a Rafaela a recomendação da presidente nacional da Comissão da Diversidade Sexual da OAB, e a possibilidade de formalizar a união passou a ser levada a sério pelas duas.
– Eu já estava bem preocupada. Pensei bem, e vi que não era impossível. O casamento não seria do jeito que eu queria, mas cheguei à conclusão de que, mesmo não sendo o que eu sonhei, a cerimônia era mais importante do que um vestido.
Rafaela e Alana aguardam espaço na agenda do cartório para, enfim, oficializar a união.
As fotos já estão garantidas: serão feitas por uma profissional que atua em casamentos e que se ofereceu gratuitamente para registrar as uniões homoafetivas que ocorrerem às pressas.
Busca pela garantia de direitos básicos
A advogada Margareth Hernandes, representante da OAB/SC em assuntos que envolvem diversidade – as comissões ainda não foram totalmente restauradas sob a nova gestão da entidade –, diz que a preocupação dos casais que apressaram o casamento faz sentido.
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– Nas declarações do presidente Jair Bolsonaro, ele nunca escondeu que não compreendia ou que não aceitava o relacionamento homoafetivo. E há pressão no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para que seja revogada a Resolução 175, que autoriza os cartórios a celebrarem o casamento – avalia Margarida Hernandes.
Ela ressalta, no entanto, que as tentativas de cancelar o direito ao casamento homoafetivo são anteriores à mudança de governo. A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) que questiona os casamentos foi proposta em 2013 pelo Partido Social Cristão (PSC), alegando que o CNJ invadiu um assunto que seria de competência do Legislativo.
Em paralelo a isso, a formação do Congresso Nacional este ano, que tem o perfil mais conservador desde 1964, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), em tese facilita eventuais retrocessos em direitos como o do casamento entre casais homoafetivos.
– A população LGBTI não possui seus direitos consolidados por lei, mas sim sob jurisprudência do STF. Dificulta mudar o panorama, mas não coíbe os parlamentares contrários aos casamentos homoafetivos, agora respaldados pelo Poder Executivo, de ingressarem com projetos de lei como o estatuto da família, que prevê a entidade familiar somente entre heterossexuais – diz a advogada.
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O administrador Edson Hillesheim, 48 anos, de Blumenau, é mais otimista. Ele e Bruno, recém-casados, escolheram a data por conveniência pessoal e planejaram o casamento sem levar em conta possíveis retrocessos na legislação.
– Não acredito que algo mude, porque tem decisão do Supremo. Mas sei que 90% dos casais estão agilizando o processo porque têm receio de alguma mudança – completa Edson.
Joinville teve número mais alto de uniões
Em todo o Estado, o município que registrou maior número de casamentos homoafetivos em 2018 foi Joinville. Segundo dados da Arpen, são 55 no total – 89% a mais do que em 2017. A maior cidade de SC é seguida por Florianópolis, que registrou 52 uniões oficiais no ano passado.
A Capital poderia ter um número ainda maior, não fosse o entendimento do promotor de Justiça Henrique Limongi, que tem histórico de negar autorização para os casamentos homoafetivos. O caso é raro no Brasil, já rendeu polêmica, e levou como consequência Palhoça, na Grande Florianópolis, a um aumento no número de uniões. Foram 37, terceiro maior índice do Estado em 2018, motivado por casais da Capital que decidem tramitar o casamento em outra comarca para evitar problemas.
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Há exemplos de pessoas que optam pelo casamento em Florianópolis, mas são surpreendidas pela negativa do Ministério Público. A Justiça autoriza em primeira instância, mas em alguns casos o promotor recorreu ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC). A resposta dos desembargadores costuma ser positiva, mas a data para a decisão é incerta – o que atrapalha quem tem planos de celebrar o casamento.
– O casal não pode planejar sua festa, uma viagem. Imagina ter convites pagos, salão, e depender de uma data futura que não se sabe qual será.
O cartório tem que cumprir o despacho, e as pessoas ficam muito frustradas – comenta Liane Alves Rodrigues, presidente da Arpen em SC.
Liane reconhece que a recomendação para que os casais adiantassem as uniões homoafetivas tem feito diferença no Estado – mas acredita que não é o único fator. Ela explica que formalizar o casamento traz uma série de prerrogativas legais, como a escolha do regime de partilha de bens e maior facilidade no financiamento de um imóvel, por exemplo. Direitos que fazem diferença para quem quer construir uma vida a dois.
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– Todos são iguais perante a lei, e se o casamento é permitido não há por que negar. É uma garantia de direitos para o casal, e uma questão humanitária – comenta.
Em uma nota-padrão, enviada sempre que é questionado pela imprensa, o promotor Henrique Limongi diz que não comenta seus pareceres e afirma basear-se no artigo 226 da Constituição Federal, que fala em “homem e mulher” quando se refere a famílias. Para o promotor, a resolução do CNJ não poderia estar acima da Constituição. Juristas defendem, no entanto, que se trata de uma interpretação pessoal da lei.
A Corregedoria-Geral do Ministério Público de SC (MP-SC) diz que o promotor possui “independência funcional” e, se usa como base a Constituição, não há motivo para intervir. Afirma, ainda, que todas as representações apresentadas contra Limongi pela negativa aos casamentos homoafetivos foram arquivadas, inclusive no Conselho Nacional do Ministério Público.