Nesta sexta-feira (6), o procurador Geral de Justiça de Santa Catarina, Fernando Comin, enviou ao presidente Jair Bolsonaro, e também ao Congresso Nacional, um pedido de alteração do Código de Processo Penal. Diante da repercussão do caso Mariana Ferrer, o homem que dirige o Ministério Público no Estado propõe que as vítimas de crimes sexuais não possam ser questionadas diretamente em audiências.
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Em entrevista à coluna, Comin fala sobre a proposta e sobre a repercussão da audiência de Mariana, em todo o país. Para o procurador, é uma oportunidade para rever a posiçõa das vítimas de estupro no sistema de justiça.
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Entrevista: Fernando Comin
Como funciona uma mudança como a que o senhor propõe no Código de Processo Penal?
Nossa intenção é que presidência do Congresso, do Senado, ou algum deputado ou senador apresente projeto de lei pra que se inicie a discussão a respeito desse tema. Abstraída a necessidade de apuração de cada um dos atores (do caso Mariana Ferrer), e isso está sendo feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público, pelo Conselho Nacional de Justiça, a questão é que isso trouxe à tona essa tradição equivocada de alguns defensores, alguns advogados, em querer explorar de maneira negativa a vida pretérita sexual da vítima como isso se tivesse alguma influência nos fatos concretos da apuração judicial.
Infelizmente, o que se viu no caso da Mariana Ferrer faz parte do cotidiano de muitas vítimas, muitas comarcas, e exige do juiz, do promotor, um esforço hercúleo pra tentar barrar esse tipo de achincalhamento.
É preciso utilizar esse momento de reflexão em torno desse assunto, que é polêmico, para produzir avanços na legislação, como países que já adotam esse modelo, que se chama ‘rape shield laws’, e é um modelo que impede que as partes utilizem fatos pretéritos das vítimas em prejuízo delas. Na Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, é assim que funciona.
Isso poderia trazer uma mudança também em outros casos, em que a mulher é desqualificada na posição de vítima?
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A discussão a respeito da necessidade de aperfeiçoamento do nosso sistema de Justiça é só uma facete de um fenômeno muito mais complexo e estrutural, de políticas de proteção e equidade de gênero. Nós vivemos essa cultura patriarcal que coloca a mulher muitas vezes como um objeto no sistema de justiça, nas relações sociais. Evidentemente que esse tipo de pratica é muito reprovável e a sociedade, à medida que vai evoluindo, vai empurrando o ordenamento jurídico, o seu sistema legal. Essa questão estrutural passa desde atitudes institucionalizadas, como a inquirição de uma vítima num processo de estupro, em juízo, até por questões que estão assimiladas na nossa cultura como se fossem normais, e não devem ser. Por exemplo, por que uma mulher paga metade para entrar, ou entra de graça numa boate? A lógica do dono da boate é encher de mulheres porque os homens, que são os grandes gastadores, vão, e ele vai alcançar o objetivo econômico. Isso é arraigado na nossa cultura. Mas, se pararmos para pensar, a mulher é objetificada, colocada como um elemento de atração de maneira absolutamente desnecessária. Outra prática que temos que coibir é que num clube, numa boate, o que justifica, sob qualquer circunstância, uma área reservada? Que não tem câmera, não tem segurança, em que se pode fazer qualquer coisa, e que é acessível apenas a uma população abastada e elitizada? Facilita, inclusive, a ocorrência de crimes sexuais, de abusos, ao largo de testemunhas, de câmeras, em que a mulher é vulnerabilizada.
O caso Mari Ferrer traz a necessidade de reflexão, do aprimoramento do sistema de Justiça, mas também traz a necessidade de a gente reavaliar práticas estruturais que conduzem a esse tipo de violência contra a mulher.
Como foi a repercussão do caso no Ministério Público, na semana que passou?
Esse episódio foi bastante complexo porque, ao tempo em que compreendemos como legítimo o movimento da vítima, da Mariana, e também dos apoiadores no intuito de buscar uma resposta para aquela aparente apatia, diante de uma violência, estávamos de mãos atadas porque é um processo sigiloso. Temos a convicção que, se fosse tornada pública desde o início a íntegra da audiência, as pessoas teriam o direito à informação preservado, e teriam constatado que houve mais de 31 intervenções em uma audiência de 3 horas, por parte do juiz e do promotor. O que repudiamos com veemência é um veículo de comunicação editar as imagens para induzir o público a um juízo equivocado dos fatos. Repudiamos, embora tenhamos respeito por vários profissionais que ali atuam, e pelo jornalismo investigativo. E a história do estupro culposo, como se fosse obra do promotor de Justiça, cria desgastes institucionais que me preocupam, e desviam o foco daquela que deveria verdadeira discussão.
O advogado pode fazer isso na audiência? O promotor deve ou não interferir?
O próprio Senado e a Câmara, que assinaram moção de repúdio, alteraram o Código de Processo Penal para que as partes façam perguntas diretamente (às vítimas).
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É uma mudança de 2009, correto? Qual era o objetivo dessa mudança que permitiu esses questionamentos?
Antes, o promotor e o advogado formulavam a pergunta ao juiz, e ele é quem dirigia a pergunta às partes, justamente para evitar essa exposição do ‘tête-à-tête’, seja do promotor, seja do advogado, com as testemunhas. Preservava mais a testemunha desse tipo de investida. Por um lado é bom, porque as partes têm a oportunidade de fazer as perguntas sem filtro. Mas nos crimes contra a dignidade sexual, e nos que têm crianças como vítimas, por exemplo, precisamos ter a preocupação com a vida privada.
Não podemos deixar uma vítima de estupro refém do bom senso do advogado, que está ali para defender seu cliente.
O juiz, como presidente do ato processual, tem obrigação de manter a ordem dos trabalhos e interromper qualquer fala ofensiva à dignidade da testemunha ou das partes. Então essa alteração (no Código de Processo Penal) nós entendemos que é necessária, sobretudo nos crimes contra a dignidade sexual. Seria um grande avanço do sistema de justiça como um todo.
O recado dado pelas imagens da audiência é muito ruim, porque assusta mulheres que são vítimas de estupro. O que o MP pode fazer para evitar que as vítimas tenham medo de passar por situações semelhantes?
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É possível, melhor adaptando o ordenamento jurídico e estruturando o sistema de justiça para essa realidade. Temos que usar esse episódio para fazer reflexões profundas sobre essas situações. Santa Catarina não tem nenhuma vara especializada em crimes sexuais, como têm em outros estados. Delegacias especializadas em violência doméstica, nós temos. Mas muitas vezes o atendimento é feito por profissionais que não estão acostumados a esse tipo de acolhimento. Há uma série de providências estruturais e alterações legislativas que podem melhorar o cenário, sobretudo nos casos de violência doméstica, de crimes contra dignidade sexual, casos de feminicídio. Outro dia uma colega minha fez um júri em Braço do Norte, de feminicídio, em que o advogado passou o júri inteiro tentando desqualificar a vítima pela sua vida pregressa. É esse tipo de absurdo que o sistema não pode tolerar. É muito importante que a sociedade não perca essa oportunidade.
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