É uma aula de Justiça e civilidade a decisão do desembargador Pedro Manoel Abreu, decano do TJSC, sobre a tentativa da Câmara de Vereadores de Jaraguá do Sul de barrar ‘ensino de ideologia de gênero’ nas escolas – um termo que, a rigor, sequer existe. Em tempos tão obscuros, é notável a clareza com que o magistrado resume o projeto: um ‘escracho constitucional’.
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O desembargador afirma, na discussão de mérito, que para supostamente “salvaguardar a moralidade e os princípios religiosos”, o Legislativo de Jaraguá do Sul quer decidir algo que cabe exclusivamente à União, dona da tutela sobre as diretrizes educacionais. Desta forma, os vereadores agridem o pacto federativo, que estabelece quais são as responsabilidades do Estado, União e municípios.
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Mas o decano vai além. Enumera os princípios constitucionais que são violados pela proposta, como “liberdade de expressão, de educação e liberdade cultural”. E afirma que a proibição agride fundamentos básicos que pavimentaram a Constituição Federal, como liberdade e pluralismo.
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“Não apenas a Constituição, mas a dignidade da pessoa humana na sua origem, e a própria realidade, que, tudo indica, parece querer esconder, como se devêssemos sentir vergonha da orientação sexual alheia ou de dela tratar nas salas de aula”, escreve.
“Pela mesma moralidade que defenderam, deveriam ter-se dignado a expungir espontaneamente a norma do ordenamento jurídico, sem que tivesse esta Corte que se manifestar sobre o escracho constitucional”, complementa.
O decano também discorre sobre o risco de que uma proibição a referências a gênero retire das escolas um importante espaço de educação sexual. “Os professores, ceifados em sua liberdade, não poderiam, por exemplo, como ocorria nas gerações anteriores, trazer aos adolescentes portadores de hormônios em ebulição as famosas palestras de orientação sexual, (…) ministradas até mesmo em colégios tradicionais católicos, em que a separação de gênero ocorria nos pátios e até mesmo em salas de aula”.
E completa: “O que querem, afinal, os senhores legisladores locais? Que as crianças e adolescentes do município de Jaraguá do Sul aprendam sobre ideologia de gênero nas redes sociais, onde não há nenhum controle ou preocupação científica com o conteúdo viralizado?”
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Para o desembargador, tal proibição exporia os professores ao ridículo.
Esta não é a primeira vez que o Judiciário se debruça sobre tentativas inconstitucionais e preconceituosas, vindas do Legislativo, de interferir nas diretrizes de educação. O pano de fundo é sempre o da ‘ideologia de gênero’, uma expressão que sequer existe nas ciências sociais. Foi criada em um documento eclesiástico da igreja católica, na década de 90, e virou ‘febre’ entre um grupo de pseudo moralistas que, sabe-se lá por que motivo, tem horror a qualquer assunto que possa envolver a homossexualidade e a diversidade do comportamento sexual do ser humano.
A decisão do desembargador é simbólica porque expõe as incoerências desses arroubos autoritários sobre a educação. Um posicionamento importante, porque essas leis não deixarão de chegar: instigados pela plateia, alguns legisladores parecem dispostos a vencer a Justiça. Nem que seja pelo cansaço.
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