Sempre que dou minhas preguiçosas corridas pela orla de Florianópolis, me deparo com a Hercílio Luz. Para um “estrangeiro”, olhar aquela ponte inutilizada é bem esquisito. Aquela lindeza sobre o mar, espaço amplo, no meio da natureza, com vista para o continente e para a ilha, uma charmosa estrutura de metal em estilo geométrico… Me deparo com ela e me pergunto: por que isso não se transforma num jardim suspenso? E passo a delirar, a imaginar a ponte lotada de gente – namorando, fotografando, apreciando o nascer e o pôr do sol, tomando um café. Sigo a minha corrida, vagaroso, pensativo…

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Leigo no assunto, recorro ao amigo Leão Serva, colunista do jornal “Folha de S.Paulo” sobre temas urbanos e autor do livro “Como viver em SP sem carro”. E recebo uma aula sobre espaços públicos. A ideia de usar estruturas viárias decadentes ou abandonadas como jardins suspensos surgiu em Paris, com o Promanade Plantée, ensina Leão. Construído numa linha de trem desativada e inaugurado em 1994, o parque tem quase cinco quilômetros de extensão e vai da Bastille ao Bois de Vincennes. Belíssimo, o viaduto foi construído no século 19 com 71 arcos.  

A atração parisiense influenciou decisivamente o projeto do High Line Park. Este projeto pude acompanhar bem de perto, desde a criação. Amigos de Manhattan se uniram para transformar uma obsoleta rede ferroviária, usada por trens de carga de carne, num dos pontos mais visitados de Nova York. A inauguração foi em 2009. Hoje o High Line, com seus 2,3 quilômetros, vai do Museu Whitney até a Rua 34,  recebe mais de dez milhões de pessoas por ano. Um golaço para a mais importante cidade dos Estados Unidos. O parque suspenso se transformou num ícone da arquitetura moderna. Deu mais vida à região. As galerias de arte vivem bombadas. Os restaurantes estão sempre cheios. E os apartamentos do Chelsea custam, agora, os olhos da cara.

Voltemos à nossa realidade. Vamos a São Paulo, onde o High Line está servindo de base para o Parque Minhocão, projeto que ganha corpo na maior cidade da América Latina. “Aqui temos um caso bem diferente”, afirma Leão Serva. “Trata-se de uma estrutura de avenida elevada para automóveis construída em 1971 e ainda em uso”. No fim de 2017 o projeto para o Parque Minhocão foi aprovado. Mas muitos paulistanos querem ver o monstrengo demolido. É uma batalha longe do fim. Por enquanto,, o elevado vai sendo usado, pelo público, durante todos os fins de semana. Fera no tema, Leão Serva vai além: “Há questões importantes de engenharia que devem ser consideradas, tanto no Minhocão, como num futuro projeto para a Ponte Hercílio Luz. Estudos técnicos são fundamentais para analisar a capacidade da estrutura que vai suportar o peso de um jardim, a água que pode ser absorvida e escoada… E há também de pensar em banheiros, barraquinhas, lanchonetes, infraestrutura para os visitantes”.

Exemplos não param de aparecer pelo mundo. Em Londres há um projeto de jardim suspenso entre Waterloo e Westminster. Bastante diferente, uma das poucas coisas boas que o Rio de Janeiro herdou, com os Jogos Olímpicos de 2016, foi a revitalização da região do Porto. Os fins de semana por lá se tornaram uma tremenda festa – mesmo com o medo tomando conta de cariocas e turistas. “Tudo isso é um exercício de desenvolvimento de áreas que darão alegria e conforto para milhares de moradores e visitantes, onde havia antes estresse, poluição e abandono”, arremata Leão Serva.

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As obras da Hercílio Luz estão chegando à etapa final. Pelo menos é o que dizem. São 35 anos em obras. Simplesmente patético. Quantos catarinenses jamais cruzaram a ponte, seja de carro, ônibus ou a pé? Agora, discute-se o que vai acontecer com ela: vai se transformar num corredor cultural? Vai ser usada para transporte coletivo? Vai servir apenas para pedestres, ciclistas e carros de passeio? Quantos políticos usaram a ponte, inaugurada em 1926, para se eleger a alguma coisa? Quanto dinheiro foi jogado – e desperdiçado – ali?    Como “estrangeiro”, espero manter minha esperança, vencer minha preguiça e, um dia, caminhar pelos 821 metros da belíssima Velha Senhora.

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Aí você entra numa livraria e se depara com uma pérola: “A felicidade” (Editora Globo), do sociólogo Domenico di Masi e do fotógrafo Oliviero Toscani. Dentro dessa pérola, uma pequena obra-prima do químico e escritor Primo Levi:“Todos descobrem mais cedo ou mais tarde na vida que a felicidade perfeita é irrealizável, mas poucos se detêm na consideração oposta de que assim também é a infelicidade perfeita. As contingências que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza: decorrem de nossa condição humana, inimiga de tudo o que é infinito”.

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Na grande reportagem de Ânderson Silva e Diógenes Pandini, os catarinenses podem entender por que os cariocas vivem hoje o estado de horror. E o que os governantes de Santa Catarina podem fazer para não repetir os erros do Rio de Janeiro. Assinantes têm acesso ao conteúdo completo antecipadamente. 

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