Dia desses tive uma forte crise renal. Não acontecia fazia 20 anos. Era um sábado ordinário. Cortar o cabelo, fazer compras, almoçar, ir ao cinema, passar na farmácia, caminhar. No começo da noite a dor veio, sem bater à porta e com a violência do Mike Tyson no auge da carreira, socando os rins por todos os lados, sem trégua, incessantemente. 

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Depois vieram o procedimento cirúrgico frustrado, a recuperação, o amor da namorada, da família e dos amigos, a preparação para a próxima cirurgia, alguma tristeza, algum cansaço, a desconfortável certeza da finitude, o repouso obrigatório. No meio disso tudo a gente se depara com Brumadinho. E percebe que a dor que carregamos nada é perto do sofrimento dos mineiros.

Apenas três anos depois de Mariana, Brumadinho. Tudo muito parecido. No final de 2015, a tragédia ambiental com 19 mortos. Agora, começo de 2019, a tragédia humana que não para de crescer.

Os helicópteros cruzando o céu com corpos suspensos, o misto de desespero e esperança dos parentes das vítimas, os destemidos bombeiros rastejando lama adentro em busca de vida, a cara-de-pau e o cinismo dos executivos da empresa responsável pelo desastre, as notícias e imagens falsas nas redes sociais.

É tudo absurdamente inacreditável.

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Caetano Veloso jamais se perde no tempo. Em "Fora da ordem", música de 1991, ele escreveu:

"Aqui tudo parece/que era ainda construção/e já é ruína/tudo é menino, menina/no olho da rua/o asfalto, a ponte, o viaduto/ganindo pra lua/nada continua…"
Minhas dores aumentaram. Agora são de fúria, indignação, inconformismo. 

Os médicos dizem que preciso me afogar de água, mas agora tenho sede somente de justiça.
Preciso também me alimentar melhor, mas agora minha fome é de solidariedade e amor por aquela gente boa e inocente de Minas.  

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Lançado pela primeira vez no Brasil, pela editora Bazar do Tempo, o livro "Terra e paz", de Yehuda Amichai. Ele nasceu na Alemanha em 1924, numa família de judeus ortodoxos. Com a ascensão do nazismo, a família mudou-se para a Palestina e, depois, fixou-se em Jerusalém. É de Amichai a beleza dos versos de "O lugar onde sempre estamos certos":

"Do lugar onde sempre estamos certos/nunca brotarão/flores na primavera.
O lugar onde sempre estamos certos/é batido e duro/como um pátio.
Mas dúvidas e amores/esfarelam o mundo/como uma toupeira, um arado.
E um murmúrio será ouvido no lugar/onde havia uma casa –/destruída."

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Nada mais a declarar.

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Está em cartaz "Green Book: o guia". Filme lindo, com dois atores espetaculares: Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Há um mundo dentro de seus personagens. E a gente sai do cinema acreditando que o ser humano ainda é uma obra viável.

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A notícia boa: as obras estão avançadas, e o novo terminal do aeroporto de Florianópolis pode ficar pronto antes do prazo prometido pela concessionária suíça (outubro deste ano).

A notícia ruim: o poder público não garante que o acesso ao novo terminal será entregue no mesmo período. Para uma cidade que vive do turismo e deseja ser reconhecida como cosmopolita, isso pode ser um vexame.