Gentilmente carregado por minha mãe, fui estudar piano quando era molecote. Nunca fui um virtuose, mas aprendi a arranhar Bach, Beethoven, Schubert… O tempo voou, a vida me empurrou para outros rumos, desisti de jogar bola, abandonei a música… Mas o piano (chamado de Perivaldo, homenagem a um ex-jogador do Botafogo) continuava lá em casa, ocupando espaço. Minha relação com ele, o piano, era profundamente afetiva. Vê-lo naquele canto do escritório me alegrava. Mas não a ponto de abri-lo novamente e me arriscar a interpretar os mestres citados acima. Até que, dois meses atrás, uma amiga contou que um padre fazia a inclusão de refugiados haitianos por meio da música. A ideia da doação me deixou com uma pulga atrás da orelha. Não seria nada fácil me desfazer do amigo de longa data. Mas a decisão foi tomada. O piano foi levado para a igreja. E fui invadido por uma emoção impossível de descrever quando recebi imagens de meninos do Haiti se divertindo com o Perivaldo. É muito boa a sensação de sentir-se útil e ajudar o próximo.

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Santa Catarina já recebeu alemães, italianos, austríacos, poloneses, portugueses, japoneses… Se fez um Estado grande, e se faz um Estado próspero, graças à união de brasileiros com esses e muitos outros povos — respeitando, entendendo e se fortalecendo com suas diferenças e suas habilidades.

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Agora, recebe também haitianos, sírios, iraquianos, africanos, imigrantes de um mundo que está fora da ordem, de cabeça para baixo. E deve se preparar para receber os irmãos venezuelanos.

Essa gente foge das crises. Escapa de guerras, de governos tirânicos, de ditadores assassinos. Essa gente luta contra a morte. E deseja apenas melhores condições de vida para os filhos. Gente é para brilhar, não para morrer de fome, canta Caetano Veloso.

E já que estamos no campo da música, vamos de Bob Marley: “Enquanto a cor da pele for mais importante do que o brilho dos olhos, sempre vai existir guerra”. Há crises por todos os lados. Fascistas, racistas, reducionistas e xenófobos também estão por todos os lados. Espalham preconceito. Derramam repulsa. Banham a terra com sangue. Propagam a intolerância social, racial e religiosa em reuniões secretas e nas redes sociais.    

Viajemos aos Estados Unidos. Eles só existem hoje como o país mais rico do mundo por conta dos  muitos povos que lá foram tentar a sorte. A terra que em 2008 elegeu Barack Obama não anda em boa fase. A escolha de Donald Trump como presidente e o recente episódio da prisão de dois negros, que queriam usar o banheiro de uma rede de café, comprovam que racismo e xenofobia estão fortemente presentes. Mas nesse grande pote americano, onde se misturam o preconceito e o espírito de que a terra é minha porque cheguei primeiro, existe Nova York. Cidade difícil, mas que abriga todos os povos. Cidade dura, em que pode até não haver confraternização entre os estrangeiros, mas onde todas as comunidades têm o seu espaço. É como os novaiorquinos dizem: “Se eles não estão aqui, então eles não existem”.

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Voltemos ao Brasil, voltemos a Santa Catarina. Não há espaço para ingenuidade. Receber os imigrantes não é tarefa nada fácil. É preciso organização, vontade política, dinheiro, espaços públicos. A nossa economia está combalida. Faltam vagas no mercado de trabalho, o índice do desemprego é alto. Mas não podem faltar solidariedade e generosidade. Não pode faltar amor ao próximo – seja ele um vizinho de rua, seja ele um refugiado de outro país, não importa. É como sentenciou Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da pele, pela origem ou pela religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”.

Portanto, Santa Catarina, braços e corações abertos. Hoje e sempre.

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Foi Dostoiévski quem disse: “Os seres humanos são criaturas indignas de confiança”. Sou eu que digo: por isso, enquanto houver mundo, leis e regras serão necessárias. Sempre.

Nossa edição especial traz duas grandes entrevistas: o filósofo italiano Domenico de Masi dá uma aula sobre a vida; e o pré-candidato Ciro Gomes apresenta suas ideias e seus projetos para tentar chegar ao Palácio do Planalto. Leituras obrigatórias de fim de semana. Assinantes têm acesso ao conteúdo completo antecipadamente.

A vida passa rapidamente. Não há mais tempo a se perder com picuinhas, pequenezas. O tempo realmente voa. Há que se aproveitar os pequenos prazeres, aqueles que a vida nos oferece. Um abraço do filho, um beijo da namorada, um sorvete na esquina, um pastel na feira, a cerveja com o amigo, admirar o pôr do sol, emocionar-se com uma inusitada atitude de carinho, sentir o cheiro do orvalho no mato. É como diz o querido amigo Zé: “Eu não quero ser o mais rico do cemitério. Eu quero é viver”.

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