“Algumas pessoas nasceram para serem enterradas”. Esta frase faz parte de “O Diabo de Cada Dia”, filme do meio-americano e meio-brasileiro Antonio Campos baseado no romance, de mesmo nome, de Donald Ray Pollock. É um filmaço sobre a rudeza da vida na América mais profunda. E a vigorosa frase que abre esta coluna poderia ser usada por autoridades federais, estaduais e municipais para justificar tantas vítimas da Covid-19. Sua variante nacional poderia ser, por exemplo, “É apenas uma gripezinha, e algumas pessoas nasceram para serem enterradas, mas eu não sou coveiro”. 

Continua depois da publicidade

São inacreditáveis, ainda hoje, a discussão e a recomendação de remédios sem qualquer eficiência comprovada pelo mundo científico. É inimaginável que, somente 14 meses depois do começo da pandemia, o Ministério da Saúde lance uma campanha em defesa dos cuidados básicos e da importância da vacinação usando toda a família do Zé Gotinha, um ídolo nacional. Mas o brasil não está sozinho na pandemia da cegueira. 

> Leia também: Apenas menor que Deus

> Leia mais: A retomada da liberdade

Basta olhar o que está acontecendo agora na Índia, onde médicos alertam para a ineficácia do esterco de vaca para prevenir casos de Covid-19. Eles alertam a população de que não há evidências científicas de efetividade da prática e, sim, o risco de espalhar outras doenças. (A Índia foi atingida com força pelo coronavírus e suas variantes. Já são 250 mil mortes, mas especialistas dizem que este número pode ser dez vezes maior, por conta das subnotificações.) 

Continua depois da publicidade

Voltemos a terras tupiniquins, onde sujeitos com baixa tradição de caráter vão a uma CPI enrolar, tergiversar, tangenciar, ofender e mentir descaradamente em nome da lealdade a ex-superiores. Onde um cardiologista, investido no cargo de ministro da Saúde, castiga a própria reputação com omissão e malabarismos evasivos. Onde um general covardemente tenta fugir do depoimento. 

> Pfizer diz à CPI da Covid que governo Bolsonaro ignorou cinco ofertas de vacina em 2020

Não se sabe onde vai parar esta CPI (cujo relator tem passado conturbado). Se ela terá resultado prático, se alguém será responsabilizado por tanta desorganização, negligência, desrespeitos, incompetência, mentiras, desmandos, negacionismos, despedidas e mortes. Mas para os infames, que serão jogados no lixo da História, muitos brasileiros nasceram apenas para serem enterrados, e ponto final. 

Sou e serei sempre seguidor de Caetano Veloso, quando ele canta: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Assim como caminharei sempre de mãos dadas com os versos do russo Vladímir Maiakóvski: “Gente é pra brilhar/que tudo o mais vá prá o inferno,/este é o meu slogan/e o do sol”. 

> Um ano de pandemia: jornalistas se reinventam com home office e novas tecnologias

Pra refletir

Do pensador brasileiro Luiz Felipe Pondé: “Cultive a virtude da paciência, tão importante, principalmente, em tempos ridículos como os nossos”.

Continua depois da publicidade

Do escritor americano Philip Roth: “Arte é vida, também, sabe? Solidão é vida, meditação é vida, fingimento é vida, suposição é vida, contemplação é vida, linguagem é vida”.

Da escritora americana Vivian Gornick: “Quando você está sozinho, ocupa todo o espaço sem interrupção. Ficar sozinho é bom, mas sentir-se sozinho não tanto”.

Do escritor brasileiro Marçal Aquino: “A vida da maioria das pessoas é medíocre, o que não as impede de enxergar tudo numa perspectiva heroica. Suportamos a existência tentando converter o banal em épico”.