Caetano Veloso afirma, em “Vaca profana”, que de perto ninguém é normal. É uma das coisas mais simples e geniais que li e ouvi. Como podemos classificar aquele sujeito, por exemplo, que troca um trabalho em escritório para ser barman de prostíbulo? Podemos condenar a moça que decide largar tudo, marido bonitão, emprego esperto e casa em bairro classe média alta, para ser hippie numa cidade miserável da Índia? O que dizer daquele primo craque de bola que deixa de jogar no Flamengo para ser médico e cuidar de índios na Amazônia? Maluquice, idealismo, altruísmo, fantasia, extravagância, resiliência, eterna busca pela felicidade… Seja lá o que move essa gente, o que nos move, de perto realmente ninguém é normal.
Continua depois da publicidade
Tenho uma amiga, um docinho-de-coco. Topa tudo sem choramingar. Qualquer filme horroroso, para ela, merece ganhar o prestigioso prêmio Guaxinim de Ouro da Lapônia. Qualquer festa chata com gente esquisita, para ela, se transforma num evento histórico. Até que ela entra num restaurante, seja de alta cozinha, meia-bomba ou um pé-sujo ordinário qualquer… Pronto. O mesmo ritual se repete há anos. Ela abre o cardápio, tira calmamente os óculos da bolsa, passa 30 minutos analisando todas as opções de pratos. Quase decidida, pergunta ao garçom se pode trocar o purê de batata pelo de mandioquinha, o arroz por uma farofinha, a Ceasar Salad pela salada de rúcula… O garçom se irrita. Também me irrito. Vizinhos de outras mesas se irritam. Nada importa. Para ela, isso é felicidade.
Quando algum estudo revela que, graças aos avanços da ciência, poderemos chegar aos cem anos, sinto-me atordoado, logo penso em minhas manias. Uma delas: meus livros, DVDs e CDs têm que estar na ordem certa, alfabética. Ousem tocá-los e não devolvê-los ao lugar preciso… Atire a primeira pedra quem não tem um amigo estranho assim.
Será que vou conseguir ser feliz, em meu caminho até o centenário, carregando essas excentricidades? Será que, para minha plena felicidade, é melhor começar a praticar o desapego e abandonar essas bizarrices desde agora? Ou já é tarde demais e serei, eu, um caso completamente perdido?
Muitas perguntas sem respostas. Dúvidas que atormentam. Manias, temores e angústias misturados. Na juventude tudo corre mais tranquilamente. O medo não paralisa, mas sim impulsiona. Destemido, o coração ordena. Fortes, as pernas compridas respondem sem pestanejar. Patti Smith, cantora e compositora americana, disse que somente um jovem consegue entender o que se passa na cabeça de outro jovem. Mas para um cinquentão, como eu, melhor ficar com Machado de Assis: “Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem”. A vida segue.
Continua depois da publicidade
°°°
Enfim, passo meu primeiro aniversário em terras catarinenses. Obrigado, SC, pelas novas brisas, pelas cores do céu, pelos mares e montanhas, pelos novos desafios, novos sabores, novos amigos, pelas novas estradas.
°°°
Sobre o Rio de Janeiro, compartilho o relato de meu amigo Marcelo Moreira. Carioca como eu, jornalista como eu, desalentado como eu:
“Uma mulher preta e da favela assassinada. Seria mais uma morte em meio a milhares de outras. Fato banal numa cidade que produz 6 mil assassinatos a cada ano. Mas essa mulher era uma vereadora. Eleita por um povo que ainda acredita que o Rio, um dia, será mais lembrado por suas belezas do que pelas tragédias.
A morte de Marielle Franco envergonha a cidade, o Estado e o País em todos os níveis. Assim como um dia uma representante do Judiciário foi vítima de uma emboscada, praticada por quem tem certeza da impunidade. Assim como um dia foi com um jornalista, que fazia do seu trabalho uma forma de melhorar a vida de gente pobre. Esse crime não ficará impune, assim como não ficou o da juíza Patrícia Acioli. Assim como não ficou a execução de Tim Lopes. Mas quantos mais representantes do Judiciário, do Legislativo ou da imprensa precisarão morrer para que, um dia, a morte de uma mulher preta e da favela seja exceção? Ou que qualquer morte seja uma exceção, e não um pequeno registro no noticiário urbano do Brasil. Até quando?”
Continua depois da publicidade
°°°
Leitura imperdível: a repórter Ângela Bastos nos conta, nesta edição, uma história muito dolorosa. A reportagem “Surra de Abandonos”, sobre crianças que são adotadas e depois devolvidas, é uma aula de jornalismo. Muito mais do que isso: é uma aula de sensibilidade e humanismo.
Leia também: