Era um domingo de março de 1968. Ele tinha sete anos, vivia na rua, suado, sujo, pés na terra. Estava jogando bola, correndo atrás de pipa, brincando e brigando com os amigos. Quase 6 da tarde, a mãe ansiosa o esperava para o ritual de todos os dias. Para isso Edith estava sempre elegante: vestido bem passado, cabelo arrumado, perfume no corpo, os olhos azuis radiantes escondidos por um par de óculos barato.

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– Menino, vá tomar um banho! – gritava, sotaque levemente português.

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Não dava mais tempo, era tarde. A “Ave Maria”, de Bach e Gounod, já ia começar. A água benta estava no canto da cozinha, num copo de geleia. Ave Maria… O garoto chorava, pedia a Deus para que os pais não brigassem, não suportava os sons provocados pelos conflitos diários.

Ave Maria… Ele implorava.

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O domingo corria pesado. Na vitrola vermelha, Edith ouvia Roberto Carlos, “Ninguém vai tirar você de mim”. O menino gostava, mas preferia o vozeirão de Tim Maia ou a doçura de Elis. Não tinha alegria naquela casa. Havia tensão, silêncio, medo.

Pelos cantos, o pai arredio e desleixado ouvia futebol e as notícias do país no radinho de pilha. Alguma coisa acontecia lá fora.

– É apenas política, é apenas política – Waldomiro costumava repetir para amansar a curiosidade do filho.

Extenuada, o brilho dos olhos roubado pelo cansaço e pela dor, a mãe ia dormir. O pai se abraçava a ele para acompanhar os programas esportivos no velho aparelho de TV.

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De um terreiro distante vinha o som ritmado e abafado de tambores e atabaques. Distraído, o garoto parecia viajar para o outro lado do Atlântico.

E o sono o abraçava, vagarosamente.

Pra refletir:

Vai ter uma festa que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar. Aí eu paro, tiro o sapato e danço o resto da vida.

Chacal, poeta

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