Por Edson Fachin, Ministro do STF, nesta sexta-feira (20) em Floripa.

"Em breve oração saúdo a todos na pessoa do Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço, e o faço ciente de que me dirijo a ser humano e magistrado que, a exemplo daqueles que querem fazer do Brasil uma verdadeira Nação republicana, é um homem de raízes e asas, para utilizar a expressão da poética alemã.

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As raízes nos localizam na identidade do espaço, no mundo em que se vive e convive, na diversidade, no respeito, no diálogo feito mais de escutas do que de falas, crescemos sob a fundação de nossos antepassados e num instante, pelo tropel da vida, somos chamados a responder aos ventos fortes que podem desafiar nossas raízes.

As asas fazem ampliar os horizontes, com olhos de ver mesmo, com coração de sentir realmente, são os sonhos que comandam a vida, e neles voamos para conhecer todos os seres alados e formar a comunhão de pessoas que fraternamente intercambiam asas e raízes.

Saúdo, pois, ao Presidente Rodrigo e a todos que neste evento, pelo significado dos projetos, iniciativas, obras e realizações carregam consigo o sadio orgulho de serem, pessoas, entidades e instituições, portadores de meritórias asas e raízes. É imperativo que se tenha ambas. Não bastam raízes nem asas isoladamente: um ser de raízes sem asas é um deserto de razão e de coração; um ser de asas sem raízes é apenas um tronco caído ou um nascimento sem causa.

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As ações ou mesmo as omissões de todos e de cada um, por isso mesmo, não são insulares, têm um sentido, ora para transformar o mundo para melhor, ora para reproduzir o campo mefistofélico que na literatura clássica se localiza entre o Aqueronte e o Lete, dois rios que, segundo a mitologia grega, delimitam metaforicamente o próprio inferno.

Por isso, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, toda a ordem ou mesmo o caos, é desafiado por uma pergunta que o latim elementar formula de modelo singelo: Cui prodest? Ou seja, 'a quem aproveita'? Em benefício de quem são as atuações ou as elipses do Poder Público?

Hoje, temos aqui, neste evento, uma resposta positiva, escorreita e exemplar. Quem dera pudéssemos extrair sementes desse solo para arrostar o mundo crepuscular que nos envolve.

Como escreveu Guy Debord, 'o espetáculo confundiu-se com a toda a realidade', vale dizer, milita-se pela diluição do juízo com garantia de independência e pela opacidade cada vez mais forte da necessária história imparcial dos fatos. A isso nos leva cada vez mais a diluição do sentido de autoridade, legítima como deve ser no Estado de Direito democrático, sob os limites da Constituição da República.

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A incerteza cresce, aumenta a dissolução da lógica, toma assento a desrazão, as estações do presente amontoam imposturas extravagantes, forma-se uma legião de desinformadores no falecimento da ágora como espaço público formador do mundo em comum.

Sejamos sinceros: as leis comumente dormem, acordam seletivamente para alguns, e permanecem adormecidas para outros. Sejamos ainda mais diretos: a praça da interpretação jurídica está repleta de capciosas intelecções ad hominem.

É tempo de perguntar: onde estão as raízes e asas da Nação que em 1988 a Constituição constituiu?

As raízes encontram a melhor resposta na síntese das palavras do então Presidente da Assembleia Constituinte proferidas por ocasião da cerimônia de promulgação do texto. Reconhecendo que a Constituição estava longe de ser perfeita, disse Ulysses Guimarães:

'(…) discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. (…). Traidor da Constituição é traidor da pátria. (…). Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. '

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A Constituição é a antítese do autoritarismo dos anos anteriores. Ela se insere na onda de democratização que passou pelos países latino americanos. Por isso, para compreender as raízes do Brasil de hoje é necessário entender esse legado recente e que está na ordem normativa.

A democracia não é feita apenas de consensos, mas também de conflitos. A democracia é o lugar de desacordos morais razoáveis. Ela se abre ao dissenso e apreende com o pensamento diferente. Para funcionar, depende de regras que garantam a divergência, a possibilidade de pensar e ser outro. Essa é, portanto, a função da Constituição brasileira de 1988.

Ela faz isso por meio de uma complexa rede de instituições políticas. A Constituição brasileira garante autonomia aos Poderes Públicos: legislativo, executivo e judiciário. Garante, de forma inédita na experiência constitucional brasileira, independência ao Ministério Público e às Cortes de Contas para fiscalizar os agentes e atos públicos. A Constituição opta por um federalismo de três níveis. São independentes não apenas os Estados e a União, mas também os Municípios. Direitos e garantias fundamentais sustentam a liberdade de expressão e a livre associação, inclusive pela livre criação de partidos políticos e sindicatos. A liberdade de imprensa é assegurada e vedada qualquer espécie de censura.

Há dissensos, mas não há bloqueios aos direitos fundamentais, à ordem econômica, à liberdade e à democracia. Este é o País que temos, com íntegro funcionamento de sua Corte Constitucional; a exemplo do que fez quando reconheceu, em relação à situação dos presídios, um estado de coisas inconstitucional, e quando aplicou, em diversas ocasiões, as técnicas apuradas da hermenêutica constitucional contemporânea: – as decisões de inconstitucionalidade por arrastamento; as sentenças aditivas ou substitutivas; ou, na inconstitucionalidade parcial, a declaração de invalidade constitucional sem redução de texto, ou mesmo a interpretação conforme, ou a lei ‘ainda constitucional’, além das decisões transitivas com eficácia ex tunc ou ex nunc, e que podem gerar efeitos prospectivos (de ablação diferida) ou sem pronúncia de nulidade (e portanto, sem efeito ablativo).

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Há, por certo, polêmicas. A propósito dos debates, defesas e contestações nesse relevante campo, ver, por todos, a obra do Professor Lenio Luiz Streck, jurista reconhecido por estudiosos, operadores práticos e teóricos pela ímpar contribuição à hermenêutica jurídica.

Em um Estado que saiu de um regime autoritário, a decisão que deve produzir confiança é, às vezes, percebida como insegurança jurídica. Não é. Isso porque, para garantir a alternância no poder, o checks and balances, o federalismo e as liberdades fundamentais, as regras do jogo precisam ser interpretadas e aperfeiçoadas. Como disse Ulysses Guimarães, a Constituição não é perfeita. Mas é ela nosso limite. Ninguém pode ou deve estar acima da ordem normativa constitucional. A Constituição é a fundação de nossas raízes.

Mas onde estão as nossas asas? Para qual direção, então, vai hoje aquilo que a Constituição constituiu?

Alguns poderiam pensar que a missão de preservar a Constituição é exclusivamente atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Essa, no entanto, é uma visão equivocada. O Supremo não detém a última palavra sobre o projeto da Constituição – o Congresso, por exemplo, pode emendá-lo. O Tribunal é partícipe da tarefa de distribuir confiança entre as instituições.

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No mesmo discurso de promulgação da Constituição, embora em um fragmento que, infelizmente, não entrou para história, Ulysses Guimarães afirmava:

'A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.'

Quando da aprovação da Constituição, poucos eram os recursos de que dispunham as autoridades públicas para combater e fiscalizar a corrupção. A resposta a esse desafio ilustra bem a cooperação entre as diversas instituições brasileiras.

Logo em 1991, três anos após a promulgação da Carta, o Brasil ratifica a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes que exige dos Estados a criminalização da lavagem de dinheiro. A fim de cumprir o compromisso assumido, o Congresso brasileiro aprova a Lei 9.613, em 1997, que cria o tipo penal. Em 2006, o Brasil ratifica a Convenção de Combate à Corrupção, novas leis são aprovadas e até mesmo a legislação de lavagem de dinheiro é aprimorada. Em cada um desses movimentos, o Congresso Nacional concede maiores poderes para que o Ministério Público e a Polícia Federal possam fiscalizar, assim como limitam os direitos de recursos que os condenados podem dispor.

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A cada um desses passos, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a responder sobre os limites – e, portanto, sobre a confiança – que o processo criminal depositava em cada uma dessas instituições. Seguindo parâmetros expressos em linguagem jurídica, o Tribunal fixou as hipóteses em que a investigação pelo Ministério Público pode ocorrer, assim como os casos em que a Polícia Federal pode, por exemplo, celebrar termos de colaboração.

Há, sim, controvérsias. As respostas sem dúvidas nunca foram satisfatórias. Há aqueles que gostariam de ver menos poderes alocados para as polícias ou competências reduzidas para o Ministério Público; há quem queira dissipar a autoridade do Judiciário. Seja como for, minha aposta como juiz constitucional é no Brasil fiel à Constituição: esta é a Nação que queremos.

Nossas asas estão nas mãos de cada um de nós. Nada mais, nada menos. Divergências podem mesmo ocorrer. Pode haver dúvidas quanto à extensão dos limites que devem ser impostos à atuação das instituições.

Não por acaso estamos aqui e agora num espaço que leva o luzidio nome do saudoso Ministro Teori Zavascki. Teori faz falta; é uma falta que fala, que diz, que se expressa num silêncio eloquente. Nós sabemos porquê. Teori fez a diferença, ser que fincou raízes e projetou asas. Deixou-nos um legado: antes e acima de tudo, tomar a Constituição como bússola, compreendendo o lócus da resposta punitiva do Estado numa sociedade aberta, plural e democrática, na qual as garantias e direitos fundamentais não são benesses seletivos para alguns e sim condições de possibilidade para todos; além disso, deixou-nos o trabalho árduo e importante na relatoria junto ao Supremo Tribunal Federal da denominada ‘Operação Lava Jato’.

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Tais afazeres nos foram transmitidos para atuar precisamente na equidistância do papel que incumbe ao magistrado. Juiz não investiga, nem acusa; juiz não assume protagonismo retórico da acusação nem da defesa; não carimba denúncia nem se seduz por argumentos de ocasião; juiz não condena nem absolve por discricionarismos pessoais. Sua consciência são os limites racionais do ordenamento jurídico, seus deveres prestam contas na fundamentação de suas decisões, na coerência de seus julgados, jamais fazendo da teoria normativa um tablado de teoria política.

Permito-me mencionar alguns dados no terreno específico da ‘Lava-Jato’;

– Nos últimos quatro anos, tramitaram em nosso gabinete mais de 180 inquéritos; remanescem em 2019 o total 62 sob nossa relatoria; foram redistribuídos 65 a outros Ministros do Tribunal; os demais inquéritos foram declinados a outras instâncias ou arquivados.

– A Procuradoria-Geral da República ofertou em quatro anos 25 denúncias; 18 já foram examinadas e 10 convertidas em ações penais;

– Nas ações penais, realizamos no período 192 oitivas de testemunhas e interrogatórios dos réus; 79 audiências foram levadas a efeito pelos juízes do gabinete;

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– A relatoria da ‘Lava Jato’, nesse período, homologou 112 colaborações premiadas, cujos valores em multas, sanções e perdimentos alcançaram montantes expressivos em juízos de primeiro grau, a cargo dos procedimentos respectivos; mesmo assim, somente no STF, nos procedimentos remanescentes, o total arrecadado ultrapassa oitocentos milhões de reais;

– Nesse contexto específico, na classe processual que compreende, em caráter residual, cisões de colaborações, compartilhamentos de provas, agravos, et coetera, proferimos 1.546 decisões, 3.852 despachos, num movimento de 8.393 petições e expedientes promovidos pelas defesas técnicas, Ministério Público e interessados;

– Em sede cautelar (prisões temporárias e preventivas, buscas e apreensões, intercepções telefônicas, quebras de sigilo, et coetera), proferimos 1.244 despachos, 493 decisões e examinamos 3.285 petições e expedientes. Há, neste momento, nessa classe, 107 ações cautelares em movimento no gabinete. E tramitam, como já dito, ao lado de 62 inquéritos em andamento presentemente, ao lado de diversas ações penais indicadas à pauta ou remetidas à revisão.

É uma síntese breve, apenas à guisa de informação.

Quero aqui fazer um especial registro à contribuição importante dos juízes auxiliares e magistrados instrutores no STF. Em nosso gabinete, mais especificamente na seara da ‘Lava Jato’, contamos com a colaboração zelosa, intimorata e infatigável do Dr. Paulo Marcos de Farias, a quem nosso gabinete e o STF reconhecem, desde sua atuação junto ao saudoso Ministro Teori, o denodo e a intrepidez que vincam um magistrado com ousio e respeito.

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Por isso mesmo, Presidente Rodrigo, disse e reitero: vim homenagear mulheres e homens como Vossa Excelência, em simetria e comunhão com o Dr. Paulo Marcos de Farias, juiz catarinense que integra nosso corpo de magistrados do gabinete, todos sabem a voos e a fundações sólidas, pessoal e institucionalmente. Tomemos o dia de hoje: ele sabe como a luz se projeta para flamejar diante de sombras conjunturais e de escuridões passageiras. O futuro virá a nos indagar: Cui prodest? Espero que o testamento de nossa consciência tenha uma resposta correta feitas de raízes e de asas. Se assim for, teremos sidos fiéis à fundação constitucional, a quem servimos. Obrigado pela vossa atenção."