Uma história bastante conhecida por quem atua no Judiciário de Santa Catarina ganhou contornos emblemáticos nesta semana. Afastada por 17 anos do cargo de juíza em um processo polêmico e controverso, Érica Ferreira foi promovida a desembargadora do Tribunal de Justiça catarinense (TJ-SC) por maioria dos votos dos agora colegas da magistrada, na última quarta-feira (19) (veja fotos abaixo). A atual vitória contrasta com uma série de derrotas que a juíza sofreu ao longo da carreira: “Eu tive muitas batalhas, a maioria foram derrotas, mas as principais eu venci”, disse a este colunista em entrevista exclusiva (veja abaixo), nesta quinta-feira (20), um dia após ter sido promovida.
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No próximo 5 de julho, às 17h, ela será empossada como desembargadora, mesmo cargo ocupado pelo pai, o desembargador José Mazoni Ferreira. Foi ele, aliás, o principal aliado da filha no martírio enfrentado desde 1994, quando ela entrou na carreira de juíza. Érica diz que estudou Direito, na Unisul, somente com um foco: queria ser magistrada. Não havia outra intenção de carreira profissional. Foi no quarto concurso do Judiciário catarinense que ela conseguiu a aprovação.
Porém, ainda em meio ao concurso que a levou ao tão sonhado cargo, foi alvo de uma denúncia que se iniciou na OAB de Criciúma, onde morava, e foi parar no Tribunal de Justiça. Érica era acusada de falsificar um laudo em um processo de tráfico de drogas. Naquela época, ela era advogada, mas havia se afastado do caso por conta do concurso do Judiciário. O laudo, usado contra Érica, era de uma mulher que nem sequer estava sendo defendida por ela no processo. Mesmo assim, a denúncia avançou rapidamente, baseada na palavra de somente uma pessoa, sem provas robustas da suposta ilegalidade.
Em 1994, Érica tornou-se juíza. Foi designada para Canoinhas e, depois, Campos Erê. Antes de completar os três anos do estágio probatório, em 1997, foi afastada administrativamente por conta da investigação sobre a suposta falsificação do laudo. Pouco tempo depois, em uma sessão tumultuada no TJ-SC, a decisão dos desembargadores foi de exonerar a magistrada. Assim, ela perdia o salário e demais benefícios da carreira.
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O cenário somente começa a mudar por volta de 2003, quando o pai de Érica assume uma cadeira de desembargador. Ao se inteirar sobre o caso, ele percebe que houve um erro na contagem dos votos da sessão que determinou a exoneração da filha. Os advogado da família, então, começam uma longa batalha judicial que se arrastou por anos. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), através do então ministro do órgão, Luiz Fux, que depois viria a se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhece, em 2011, que Érica havia vencido o processo dentro do TJ e deveria ser reintegrada.
Entretanto, ainda havia resistência dentro do Tribunal catarinense, e a decisão não era cumprida. Somente em 2013, depois da própria Érica ir pessoalmente a Brasília cobrar uma posição do STJ é que o TJ-SC decidiu cumprir a medida dos órgãos superiores e reintegrou a juíza exonerada. Naquela época, o Tribunal entendeu que ela deveria iniciar a carreira “do zero”, no começo da fila de juízes.
Foi somente em outubro de 2023 que Érica conseguiu uma vitória no STJ para ser considerado o tempo de carreira que ela ficou afastada, e assim o TJ-SC a colocou em posição mais avançada de carreira. Esta mudança foi fundamental para que a juíza pudesse chegar, nesta semana, ao posto de desembargadora. Além da vitória pessoal diante do polêmico afastamento, a eleição para a nova função é simbólica: esta é a primeira vaga dentro da nova norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece a divisão de vagas de magistrados por gênero.
Veja abaixo fotos de Érica e da votação no TJ-SC
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Leia a entrevista exclusiva completa com a nova desembargadora
Como você está se sentindo hoje (quinta-feira, 20), um dia depois de se tornar desembargadora?
Com a alma lavada, com uma sensação de dever cumprido, com uma sensação de que valeu a luta, que realmente a gente tem que acreditar na nossa verdade. E, se você acredita na sua verdade, a Justiça pode demorar, a Justiça pode errar alguma hora, mas lá no final, lá no fundo, se a verdade está do teu lado, ela vai aparecer, ela vai aparecer. Então eu acho que se tem alguém dentro do Poder Judiciário que mais acreditou e teve fé na Justiça, e foi em busca, enfim, eu acho que sou uma delas. Posso não ser a única, com certeza eu sou a única, mas eu sou uma delas. E me parece muito importante ter hoje uma desembargadora, mas ter alguém dentro do Poder Judiciário, que tenha essa carga de vivência nessa luta pela Justiça. Acho muito emblemático. Então, eu me sinto hoje aliviada e pronta. Sim, eu posso dizer que estou pronta.
Diante do que você viveu, muda a tua visão sobre a Justiça?
Muda a visão no sentido de que a Justiça é feita por pessoas. Então, a justiça não mudou. A justiça para mim não muda, mas entender que a justiça é feita por pessoas e que pessoas erram, eu também, com certeza, vou errar em algum momento. Isso faz parte do ser humano. Somos todos humanos, ninguém é Deus aqui. A Justiça é feita por pessoas que têm sentimentos bons e sentimentos ruins, faz parte. Mas essa história toda me deu uma inteligência emocional de saber separar o joio do trigo. De saber me acalmar na hora que tem que me acalmar, de saber dar um passo para trás na hora que tem que dar um passo para trás, e saber realmente reconhecer que existem muito mais pessoas boas dentro do Poder Judiciário do que pessoas ruins. Então… me deu uma visão mais ampliada e mais equilibrada realmente de como é que é lidar com a Justiça.
O que as pessoas podem esperar de você como desembargadora?
Uma pessoa humana, que já sentou em quase todas as cadeiras dentro do poder judiciário, que sabe e não vai esquecer as mazelas que passou, e acho que isso passei exatamente para não esquecer e para colocar isso em prática. Principalmente, uma pessoa que entende e olha o processo e sabe que atrás desse processo existem pessoas, existem vidas, existem famílias, e eu sempre olho o processo lembrando que, e isso eu falo para minha assessoria, que atrás de um processo, de um número, tem um cliente e um paciente. Cliente porque ele paga o meu salário, é ele que paga o nosso salário, então ele tem que ser tratado como um cliente, com todo o respeito que merece. E paciente porque em todo o processo tem dor, não existe processo sem dor. Então ele tem que ser tratado também como um paciente, como um doente, com toda a meiguice, com toda a solidariedade, com toda a empatia possível. Mesmo para dizer não, você tem que dizer um não com empatia. A pessoa pode não aceitar a sua decisão, mas ela tem que entender a sua decisão. Ela tem que entender o teu raciocínio. Ela pode dizer, “olha, eu não aceito, mas eu entendo”. Então eu acho que é isso que nos meus processos, já antes mesmo, não vou mudar, já era assim, mas que o Tribunal vai ter, eu acho que esse acréscimo, essa contribuição em ter alguém que tem essa visão da dor que um processo causa e, principalmente, que o tempo gasto num processo é muito dolorido. Tu pode conseguir a Justiça como eu consegui, mas ela levou muito tempo e ela causou muitos danos nesse tempo, então existe o processo lento, ele tem um tempo certo, mas quando passa aquele tempo, ele causa prejuízos irreparáveis. Então a gente tenta aqui, na medida do possível, de julgar o mais rápido possível, mas com cuidado, com empatia, com estudo, mas sabendo que quanto mais um processo leva de tempo pra ser julgado, mais dor, mais dano ele vai causar e tu não vai conseguir recuperar isso.
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Além de ser uma resposta pra você, essa promoção de ontem (19/6) é também uma resposta para a sua família?
É um resgate moral, é um resgate moral pra mim, mas pra minha família principalmente, é um resgate pros meus pais, pros meus filhos. Que passaram por tudo isso sem ter muito o que fazer, apenas aguentar e lutar junto comigo. Então, é um resgate que nenhuma indenização moral pagaria. E por isso que eu acho que foi muito emblemático eu entrar nessa vaga ainda da resolução de mulheres (do CNJ). Mas me pareceu assim que Deus está lá em cima brincando e jogando ali, mexendo os pauzinhos dele com uma certa ironia e escolheu exatamente essa vaga, esse momento emblemático para eu voltar e ser desembargadora. Porque se não fosse essa vaga eu não estaria nem daqui falando contigo, seria só mais uma.
Esses teus processos todos, esse teu processo todo dentro do Judiciário, tudo que aconteceu de 1994 para cá, reflete no teu dia a dia, no teu trabalho?
Com certeza. E isso, mas isso é uma coisa natural e eu nem espero, às vezes a gente, claro, a gente tenta esquecer o passado, tenta esquecer para poder tocar pra frente, a vida é feita pra frente, a gente tem que andar pra frente, mas isso é uma lição que tem que ser aprendida. Porque se eu não aprender nada com tudo que me aconteceu, e se eu não for uma pessoa diferente com tudo que me aconteceu, não teria lógico eu ter passado por tudo isso. Então, com certeza, tem interferência nisso, às vezes positiva e às vezes negativa, infelizmente.
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A Erica, que queria ser juíza lá atrás, quando você era jovem, olhando pra agora e tudo que você passou, achas que valeu a pena?
Se tu tivesse me feito essa pergunta dez anos atrás, eu teria outra resposta, mas é claro que agora é mais fácil responder, porque agora eu alcancei o objetivo. Valeu? Valeu. Mas foi custoso. Se me dissessem anos atrás, “ó, tu vai passar por tudo isso. Vamos? Não, não vamos”. Com certeza não vamos. Mas qual foi o meu resgate emocional? Foi exatamente nesse sentido. Uma batalha por vez, cada vez uma batalhazinha e pensando sem fazer projetos muito longos, fazendo sempre projetos curtos.
Você acha que o Judiciário catarinense muda com a tua história? Sente o impacto disso?
Não, eu acho que o Judiciário catarinense está mudando já com esses novos desembargadores que estão vindo, que é uma nova leva, tanto os homens como as mulheres, com uma visão diferente, uma visão mais atualizada, uma visão, digo, com mais empatia. Então acho que não é eu que vou alterar isso, na realidade essa alteração já está vindo aí com essa nova leva, que é salutar, porque é saudável. Na verdade, eu acho que essa é a lógica dos tribunais, em se renovando e aí cada renovação vem pessoas novas com cargas emocionais de vida novas e que vão ser jogadas isso nos processos.
Qual é a lição que a tua história deixa?
Nunca desista de batalhar. Eu tive muitas batalhas, a maioria foram derrotas, mas as principais eu venci. Então, não olhar a quantidade de derrota, mas olhar as vitórias, as principais vitórias, dedicar a tua energia naquilo. Enfim, são vários ensinamentos, mas eu acho que acreditar na Justiça, acreditar na tua verdade, não esmorecer, saber que a coisa é lenta, é uma guerra longa muitas vezes, mas que no final, se a verdade está contigo, ela vai prevalecer, uma hora o bem vai vir e vai fazer a coisa acontecer. Só tem que ter paciência, equilíbrio, inteligência emocional de conseguir chegar até o final, que não é todo mundo consegue.
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Do caso específico que jogou tudo isso para você, que deu toda essa dor de cabeça, você tira a lição também, isso volta para a cabeça?
Sim, de vez em quando, de vez em quando o gatilho vem, né? Claro, a gente tem gatilhos emocionais, isso é fato, né? Vem, e eu tento, o que eu me policio é quando eu percebo que um gatilho emocional está vindo num processo, num julgamento, eu recuo. Que aí eu tenho assessoria para isso, eu tenho colegas pra me auxiliar e aí quando eu percebo que algum gatilho emocional pode vir a interferir naquele julgamento aí essa é a minha preocupação. Eu recuo e digo: “ó, vamos, não, talvez eu não esteja pronto para esse julgamento”. Tenho, acho, essa humildade, essa honestidade, em poder dizer às vezes e reconhecer: “olha, não, esse julgamento eu não estou pronta, não”.
E, para finalizar, queria te ouvir sobre essa primeira vaga destinada para mulheres pela resolução do CNJ aqui no Tribunal e você ser a primeira escolhido.
Então, realmente, o fato de ser a primeira mulher nessa vaga ela é emblemática pela minha história de vida. Acho que é importante também porque as mulheres que vão vir na sequência sabem que vão ter, pelo menos em mim, uma amiga, uma defensora. Não é nada contra os homens, acho que, enfim, é um momento histórico no país em que muitos tribunais já tinham essa paridade, então nós estamos apenas igualando os demais tribunais que não têm, e Santa Catarina vai começar agora a ter essa paridade. E eu não entro na discussão do mérito, porque eu acho que é uma discussão não é muito saudável no sentido de que não tem muita solução. Claro, todo mundo tem aí a sua posição e tem que ser respeitada, mas eu acho que o Tribunal principalmente deu uma demonstração de que cumpre as determinações superiores, como todos os juízes devem cumprir, que entende a necessidade de realmente colocar mais mulheres ali para julgamentos, e é um tribunal que normalmente ele é inovador, ele respeita, ele gosta de coisas novas, ele está sempre muito à frente e agora ele vai se equalizar com as mulheres ali no Tribunal.
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